Antes
de discorrer sobre o tema, vale dizer que as discussões jurídicas como a que agora
esta sendo proposta, só se torna possível no Brasil em decorrência de um péssimo
hábito que o legislativo brasileiro possui de adotar o direito penal de emergência
como sendo ele a solução para todos os problemas, principalmente em relação a
criminalidade, ou seja, sempre que ocorre um determinado fato de repercussão
nacional, logo em seguida o que se vê é um novo crime cuidando da situação.
Tal
situação encontra-se completamente dissonante de tudo aquilo que
verdadeiramente deve ser vetor de lei penal, pois o que se observa é que a
mídia e toda sua força tem levado a sociedade a acreditar nessa fábula. Por
toda a importância que o direito penal possui, o mesmo se estendendo ao seu
processo legislativo, deve ele ser invocado somente quando extremamente necessário,
e não por pura conveniência. Outrossim, os fundamentos de sua existência, muito
mais que clamor público, devem ser vistos e justificados em razões
fundamentadas de política criminal.
Os
efeitos do direito penal de emergência, até podem ser cogitados quando da
proposta de alguma lei, mas de fato só poderão ser sentidos quando na prática
suas incongruências surgirem com maior intensidade. Sabe-se que legislar é
função típica do poder legislativo, o problema é que quando tal função não é
feita como deveria, ou seja, com a cautela necessária, o judiciário que a
principio deveria apenas julgar, passa a exercer papel de legislador na
tentativa de corrigir as falhas das leis.
Nesse
sentido, e já iniciando o assunto, temos a malfadada Lei Nº 8.072 de 25 de
julho de 1990, denominada Lei dos Crimes Hediondos, que sabidamente teve como
impulso de criação a necessidade de se dá uma reposta social, após toda
repercussão vista no caso do sequestro dos empresários Roberto Medina e Abílio
Diniz.
Essa
lei exemplifica com perfeição o quadro das leis criadas simplesmente por
pressão da mídia e da sociedade, que não possuem outra finalidade, senão
atender o apelo momentâneo da sociedade, suprimindo direitos e garantias fundamentais,
na ilusão de que o tratamento mais rigoroso fosse a melhor solução para os
problemas sociais.
Vale
dizer que além de servir como reposta social, a citada lei tratava de assunto
já iniciado na Constituição Federal de 1988, porém, que não havia sido explicado,
que era justamente a questão dos crimes hediondos.
De
tal sorte que dois anos depois da Constituição Federal ter sido promulgada e
ter feito alusão aos crimes hediondos, deixando expresso na oportunidade
somente os equiparados (tráfico – tortura – terrorismo), veio a Lei Nº.
8.072/90, para definir, não só quais crimes seriam considerados hediondos, como
ainda estabelecer tratamento mais rigoroso.
Justamente
por ter estabelecido tratamento diferençado e muito mais rigoroso, tanto para
os presos provisórios como para os condenados, foi que a citada lei desde seu
nascimento já passou a ser objeto de inúmeras críticas. Importa dizer sobre a
liberdade provisória, que cuidou a lei dos crimes hediondos (8.072/90), por
vedar expressamente a liberdade provisória para o tráfico de drogas, deixando
claro no seu artigo 2°, inciso II, que tal crime era insuscetível de liberdade
provisória.
Esse
fato, aliado à inúmeros outros motivos e restrições à direitos constitucionais,
só fortaleceram as críticas que até hoje são feitas à referida lei.
Destarte, em consonância com tal dispositivo, dezesseis anos
depois, entrou em vigor a Lei Nº 11.343/06, que além de estabelecer novas
diretrizes no trato das drogas, ratificou a vedação da liberdade provisória já
feita pela Lei Nº 8072/90, deixando isso expresso no seu artigo 44.
Art. 44. Os crimes previstos nos arts. 33,
caput e § 1o, e 34 a 37 desta Lei são inafiançáveis e
insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória, vedada
a conversão de suas penas em restritivas de direitos.
Como reflexo de toda discussão que já havia se instalado no
cenário jurídico do país, iniciado pela lei dos crimes hediondos e reforçado
pela Lei Nº 10826/03 (Estatuto do Desarmamento) que fazia idêntica vedação,
viu-se surgir em 2007, depois de ação direta de inconstitucionalidade que
considerou tal vedação uma afronta aos princípios da presunção de inocência e
do devido processo legal (art. 5º, incisos LVII e LXI da CF/88), foi editada a Lei
Nº 11.464/07, que retirou do inciso II, artigo 2º da Lei Nº 8072/90, a vedação
da liberdade provisória.
Embora se tenha retirado da lei de crimes hediondos a proibição da
liberdade provisória por ter sido ela declarada inconstitucional, a discussão
não terminou, apenas tomou novos rumos. Isso porque, a Lei Nº 11.464/07, não
atingiu a redação do artigo 44 da Lei Nº 11.343/06, que se manteve inalterado,
fazendo com que parte da doutrina sustentasse que a vedação constante do
referido diploma teria sido derrogado tacitamente.
Diferentemente do que se via na doutrina, a jurisprudência
nacional caminhava em sentido diverso, dizendo que a vedação da lei de drogas
não havia sido alcançada pela Lei Nº 11.464/07, e, portanto, deveria ser
aplicada.
O que desde o inicio já não fazia o menor sentido, uma vez que se a
alteração apresentada pela Lei Nº 11.464/07, refletia o entendimento do STF
para uma situação fática, qual seja, a inconstitucionalidade de se proibir a
concessão de liberdade provisória para os crimes hediondos, o mesmo entendimento
poder-se-ia ser transportado para todo o tipo de situação semelhante, como o
artigo 44 da lei 11.343/06.
Os fundamentos utilizados para se declarar a inconstitucionalidade
tanto da vedação contida na lei dos crimes hediondos como na lei 10826/03, servem
perfeitamente ao caso do artigo 44 da lei 11.343/06. Ocorre que na prática o
que se viu foi justamente o contrário, tanto que o próprio STJ em um de seus
julgados declarou que a vedação existente no artigo 44 da lei 11.343/06, era
por si só suficiente para se restringir a benesse da liberdade provisória,
mesmo já havendo dispositivos semelhantes sido declarados inconstitucionais.
Quando tal questão chegou ao STF, não se viu tratamento
diferenciado. Muitos foram os pedidos de liberdade provisória indeferidos, por entender
a colenda corte que a vedação contida na referida lei de drogas era legítima.
Por certo tempo, isso remontou e determinou o entendimento majoritário da
referida corte, fortalecendo o posicionamento pela perfeita possibilidade da
vedação, nunca se analisando seu viés constitucional, muito embora isso já
fosse suscitado pela a doutrina.
Em decorrência dos muitos pedidos que se chegavam para a apreciação
da referida corte, alguns ministros começaram a cogitar a possibilidade de se repensar
tal posicionamento, julgando necessário a realização de uma nova reflexão sobre
a matéria. Reconhecida essa necessidade, e depois de feita, o que se viu foi
que alguns dos ministros começaram a repensar a matéria, agora com o viés
puramente constitucional, para assim mudar a forma de votar.
O primeiro a mudar entendimento sobre a matéria foi o ministro Eros
Grau, que rompendo completamente com o entendimento até então predominante na
corte, concedeu liberdade provisória, declarando ainda no seu voto que tal
vedação representava uma clara afronta aos princípios da presunção de
inocência, do devido processo legal e da dignidade da pessoa humana. Refletindo
assim os princípios constitucionais mais sensíveis.
Essa demonstração de mudança na forma de se pensar o assunto, serviu
primordialmente para legitimar e de certa forma restaurar toda presunção de
inocência que há muito havia sido deixada de lado, com os dispositivos que suprimiam
os direitos e garantias para tratar com tanta ferocidade aquele que é presumidamente
inocente.
Dispositivos que tratam com maior
severidade todo aquele que presumidamente teria praticado uma infração penal
seja ela qual for, hediondo ou equiparando, é por certo um vestígio da teoria
do direito penal do inimigo, que como pilar de existência, defende tratamento
radical para todo aquele que se apresenta como verdadeiro inimigo do estado,
tendo como consequência a supressão de seus direitos e garantias individuais.
A importância de se ter dado o primeiro passo, é que ele acendeu a
questão junto aos demais ministros do STF, fazendo com que outros que até então
seguia o entendimento majoritário, indeferindo a liberdade provisória para o crime
de tráfico, mudassem esse posicionamento, como por exemplo, o ministro Ricardo
Lewandowski, que em setembro de 2011, funcionando como relator no HC108483,
votou pela concessão da liberdade provisória, sendo, na oportunidade, seguindo
por todos os demais ministros que compunha 2ª turma do STF.
Na oportunidade o ministro Ricardo Lewandowski, disse ainda que
não havia no caso concreto, nenhum motivo que demonstrasse a real necessidade
da manutenção da prisão processual, de forma que ela não poderia se sustentar
apenas na vedação abstrata do artigo 44 da Lei Nº11.343/06. Manter encarcerado
aquele que é presumidamente inocente simplesmente por constar no texto legal
tal disposição, é de fato uma afronta a constituição.
Para se alcançar esse novo modo de pensar, valiosa foi a
contribuição da lei 12.403/11, responsável por reformular completamente o
tratamento franqueado à prisão cautelar no Brasil. Essa lei, seguindo todas as
premissas constitucionais, deixou expresso que somente nos casos realmente
necessários é que se deve manter alguém preso, seja qual for a infração penal. Para
tanto, inovou-se ainda com a possibilidade de serem fixadas cautelares para a
manutenção da liberdade, como, a propósito fora feito no julgamento do HC108483
em que depois de concedida a liberdade, julgaram por bem os ministros pela fixação
de cautelares diversa da prisão.
Desse modo, conclui-se que a maior contribuição que a lei Nº 12.403/11
trouxe, além é claro que minimizar o problema da superlotação, foi de fato
fazer valer a regra da liberdade. Mantendo preso somente quem realmente deve
assim estar.
Embora o controle de constitucionalidade tenha sido realizado pela
via difusa, teoricamente com efeitos inter
partes, nada obsta que o mesmo seja utilizado como precedente, até porque,
além de uma referência jurisprudencial, a citada decisão inquestionavelmente
representa de fato o entendimento da maior corte do país, que pode se
sustentado em qualquer instância.
Não significa dizer, que doravante, todo caso de tráfico terá por
certa a concessão da liberdade. Isso de fato dependerá dos fatos levados até o
conhecimento do magistrado, para que valorando a situação colocada, possa decidir
de forma fundamentada qual o motivo que poderia justificar a manutenção do
cárcere cautelar. De modo que a simples vedação constante do artigo 44 da Lei
Nº 11.343/06, de tão absurda, que não permite sequer ao magistrado sopesar a real
necessidade da medida de prisão, no caso, ela simplesmente é imposta tal qual
uma operação aritmética, não permitindo ao juiz pensar o caso.
Consolidando esse entendendo, a principal mudança que se viu no STF,
é que outrora bastava ser crime de tráfico para se validar a disposição do
artigo 44 da lei Nº 11.343/06, e sem analise de mérito manter a prisão. Depois
da aludida reformulação, passou-se a analisar tal questão sob o enfoque constitucional,
verificando no caso em concreto se a medida é de fato necessária.
Independente do crime que alguém responda, não se deve privar essa
pessoa das garantias constitucionais já instituídas. Estabelecer proibições diferenciadas
para autores de certos crimes é com certeza legitimar o direito penal do
inimigo, este que é conhecido justamente por desafiar diretamente tudo que se
preza num estado democrático como o Brasil, que por 24 anos se tem uma
constituição que preza sobremaneira o respeito a tais premissas.
Cumpre informar, que demonstrando igualmente uma mudança de
pensamento, depois de muito analisar tal questão, o STJ cuidando da questão dos
menores infratores, já editou a súmula 492, dizendo: “o ato infracional análogo ao tráfico de drogas, por si só, não conduz
obrigatoriamente à imposição de medida socioeducativa de internação do
adolescente”. Ainda que se trate da situação dos menores, isso certamente é um
avanço da forma de se pensar.
Por fim, importa dizer que hoje, ainda há vários entendimentos sobre a
vedação do artigo 44 da Lei Nº 11.343/06, mas também não se pode negar que a justiça
brasileira tem caminhado para uma maior constitucionalização de todos os
institutos de direito penal e processual penal. Analisando o retrospecto sobre
a liberdade provisória para o crime de tráfico, não se nega que a projeção
feita é favorável, uma vez que hoje já são várias as decisões, que independente
de conceder ou negar, mais do que isso demonstram que hoje as decisões estão sendo
fundamentadas em razões justas de necessidade, e não mais em simplesmente indicação
de vedação legal.
O enrijecido sistema criado pelo artigo 44 da Lei Nº 11.343/03, de
simplesmente barrar, dentre outros, a concessão da liberdade provisória no
crime de tráfico, fazendo isso de forma abstrata e sem valoração alguma, já não
mais existe. Ainda que se tenha hoje a Lei Nº 12.403/11, para auxiliar no trato
com a prisão, é de máxima importância que assim como o feito com dispositivos passados,
seja também o artigo 44 da lei de drogas, declarado inconstitucional pela via
adequada, para com a edição de uma nova lei seja dada nova redação ao referido
artigo, ou ainda seja ele revogado na totalidade, para que assim não a haja
mais discussão, ou mesmo, possibilidade de se recordar inconstitucionalidades.
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MARCÃO, Renato. Art. 44 da lei 11.343/06 (Lei de Drogas): A
liberdade provisória em crime de tráfico na visão do STF. Disponível em: http://www.novacriminologia.com.br/Artigos/ArtigoLer.asp?idArtigo=2594. Material da 5ª aula da Disciplina Tutela penal dos bens
jurídicos individuais, ministrada no Curso de Pós-Graduação Lato Sensu
TeleVirtual em Ciências Penais – Universidade Anhanguera-UNIDERP|REDE LFG.
GOMES,
Luiz Flávio. DAMÁSIO, Bárbara. Liberdade provisória e tráfico de drogas. Disponível
em http://www.lfg.com.br 24
junho. 2009.