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“O Direito Penal tem cheiro, cor, raça, classe social; enfim, há um grupo de escolhidos, sobre os quais haverá a manifestação da força do Estado.” (Rogério Greco – Direito Penal do Equilíbrio)

sexta-feira, 13 de abril de 2012

O CASAMENTO COMO CAUSA EXTINTIVA DE PUNIBILIDADE PARA OS CRIMES DE ESTUPRO



Fabricio da Mata Corrêa
Muito embora tal colocação possa hoje parecer divorciada da realidade, principalmente pela nova importância que fora dada aos crimes que antigamente eram classificados como contra os costumes, mas que hoje graças à nova ótica constitucional, são chamados de crimes contra a dignidade sexual, pautando-se fortemente na dignidade da pessoa humana.

A discussão que ora se inicia é justamente porque até pouco tempo atrás, ainda se tinha elencado como dentre as causas extintivas de punibilidade, o casamento entre agressor e vítima de crimes sexuais. Na verdade essa era uma triste realidade que até pouco tempo ainda estava em vigor, mas que com a revogação outras discussões surgiram. E isso estaremos vendo de forma bem simplificada.

Doravante, para entender o motivo de tal vênia legislativa é necessário que se volte no tempo, mais especificamente para a década de 40 (1940), ano em que se promulgou por meio de decreto lei nosso atual Código Penal. Sob o manto de uma sociedade extremamente patriarcal a mulher que nada mais era do que um objeto ou propriedade tanto do pai como do marido, não recebeu por parte da legislação o devido cuidado, e tampouco o merecido respeito, principalmente no que tangia à sua vontade sexual. 

Até porque não era esse o bem jurídico a ser tutelado, mas tão somente a preservação de um modelo moral de sociedade que pouco se falava em sexo. Tanto que os tipos penais visavam tão somente fazer com que os costumes daquela sociedade, ou seja, aquilo que naquela época era tido como moralmente correto, não fossem violados, como por exemplo: sexo antes do casamento; casar-se já estando a mulher deflorada ou então grávida, enfim eram aspectos não ligados à vontade da mulher ou se ela consentiu ou não para o ato, mas sim para as consequências morais que essa prática traria para sociedade.

E pensando justamente em toda essa repercussão social, foi que o legislador da época julgou por bem desenvolver um meio ou um caminho que visasse, não propriamente desfazer, mas pelo menos encobrir as marcas deixadas. Todavia, para se compreender essa ideia, deve-se analisar tal situação pela ótica da época, ou seja, em 1940 era socialmente aceito uma mulher se casar não sendo mais virgem, ou então casar já estando grávida. Na maioria das vezes o simples fato do pai ter uma filha em casa sem conseguir para ela um casamento, já era isso motivo suficiente de vergonha, quem dirá se essa filha tivesse sido vítima de violência sexual. 

Outrossim, não custa relembrar que sobre o bem juridicamente tutelado, notem que falava-se a lei em crimes contra os costumes, ou seja, visava tão somente fazer com que os costumes sociais daquela época fossem preservados. 

E justamente por ser assim é que em determinados casos o fato do agressor aceitar-se casar com a vítima, já era suficiente para se excluir sua punibilidade. E note que sequer se falava ou se cogitava na possibilidade da vítima manifestar sua vontade, até porque em muito dos casos o casamento era imposto pela própria família, tudo para que tal ato não repercutisse socialmente de forma à denegrir não só a imagem social da vítima, como também da própria família.

Logo, havendo o casamento entre agressor e vítima, não se poderia falar em sanção penal, justamente pela força da norma do artigo Art. 107 do Código Penal que enumerou esse casamento dentre as causas extintivas de punibilidade. Tendo feito da seguinte forma:

Art. 107 - Extingue-se a punibilidade:
VII - pelo casamento do agente com a vítima, nos crimes contra os costumes, definidos nos Capítulos I, II e III do Título VI da Parte Especial deste Código;
VIII - pelo casamento da vítima com terceiro, nos crimes referidos no inciso anterior, se cometidos sem violência real ou grave ameaça e desde que a ofendida não requeira o prosseguimento do inquérito policial ou da ação penal no prazo de 60 (sessenta) dias a contra da celebração.

Tal espécie extintiva de punibilidade era o reflexo perfeito do modelo patriarcal que imperava na época. O legislador no seu entender, havia encontrado uma maneira perfeita do agente agressor minimizar as sequelas (leiam-se MORAIS) produzidas por sua conduta. Muitos foram os casamentos que se originaram por meio desse instituto, e mais o que se é possível imaginar que quando determinado rapaz estivesse interessado em determinada moça, mas esta não o correspondesse, ao invés de insistir na conquista, se o objetivo era o casamento bastaria que ele a violentasse que em seguida o casamento seria a solução viável. Claro, que não se tem dados sobre essa prática, mas pelo que se vê é fácil se chegar em tal conclusão.

 Por mais distante que tais conceitos possam parecer frente a atual realidade, é imperioso destacar que isso ainda vigorara até o ano de 2005, quando só então com o advento da lei 11.106/05, é que esse cenário sofreu grandes e necessárias mudanças, estando tais alterações voltadas paras as questões que até então se denominada “dos crimes contra os costumes”.

Beira ao absurdo imaginar que num caso de violência sexual, onde um homem tenha constrangido uma mulher a ter com ele relação sexual, a melhor solução que se encontre é casar justamente o agressor com a vítima. Volta-se a chamar a atenção para o fato que de pouco importava a vontade da mulher, mas tão somente sua reputação, até como de mulher honesta frente à sociedade.

Com o advento da referida lei, figuras quase folclóricas deixaram de existir, como por exemplo, o tipo penal do já revogado do crime de adultério, ou então o crime de sedução, e como não voltar a falar da “mulher honesta”, conceito este que por anos esteve a permear o ideário penal, e que de certa forma estabeleceu um preconceito legal entre aquilo que se considerava mulher honesta e não honesta. Relembrando e ratificando mais uma vez que os crimes tratavam dos costumes e não da liberdade ou dignidade das pessoas, principalmente das mulheres.

Os tipos citados eram:


  Art. 217 - Seduzir mulher virgem, menor de 18 (dezoito) anos e maior de 14 (catorze), e ter com ela conjunção carnal, aproveitando-se de sua inexperiência ou justificável confiança:
(Revogado pela Lei nº 11.106, de 2005)
        Pena - reclusão, de dois a quatro anos.
(Revogado pela Lei nº 11.106, de 2005)

   Art. 219 - Raptar mulher honesta, mediante violência, grave ameaça ou fraude, para fim libidinoso:
(Revogado pela Lei nº 11.106, de 2005)
        Pena - reclusão, de dois a quatro anos.
(Revogado pela Lei nº 11.106, de 2005)

Adultério
(Revogado pela Lei nº 11.106, de 2005)
        Art. 240 - Cometer adultério:(Revogado pela Lei nº 11.106, de 2005)
        Pena - detenção, de quinze dias a seis meses.

Voltando para a discussão proposta, outro ponto positivo com o advento da Lei 11.106/05, foi de fato a revogação dos incisos VII e VIII do artigo 107 do CP, que até então eram responsável por dar guarita à extinção de punibilidade pelo casamento. 

Mas o que se questiona agora, depois da revogação de tal dispositivo legal não é nem sua criação, posto que conforme já falado isso se adequava perfeitamente aos padrões morais da época, mas o que realmente chama a atenção é o fato de que tal dispositivo perfilou por anos ao lado de princípios constitucionais e dentre eles o da dignidade da pessoa humana. 

Como que poderia se sentir uma mulher que além de violentada, ainda teria que se conformar que deveria conviver maritalmente com seu agressor? Onde foi a parar a dignidade da pessoa humana???

Mas cabe esclarecer que a extinção de punibilidade estava estritamente condicionada ao casamento. Motivo pelo qual a extinção de punibilidade vista no artigo 107 do CP, esta condicionada a uma interpretação sistemática com a norma do artigo 1520 do Código Civil, que assim dispõe até hoje:

Art. 1.517. O homem e a mulher com dezesseis anos podem casar, exigindo-se autorização de ambos os pais, ou de seus representantes legais, enquanto não atingida a maioridade civil.
Art. 1.520. Excepcionalmente, será permitido o casamento de quem ainda não alcançou a idade núbil (art. 1517), para evitar imposição ou cumprimento de pena criminal ou em caso de gravidez.

É importante dizer que tamanha era a força do modelo patriarcal, que mesmo tendo sido deixado de lado, ainda se é possível notar várias “cicatrizes” que o mesmo deixou, como por exemplo, o próprio artigo 1520 que mesmo tento sido deixado de lado, alguns até dizendo ter havido uma revogação tácita no que tange à sua 2ª parte, mas fato é que esta em vigor até hoje, muito embora não seja mais aplicado.

Para Tanto faz-se necessário, alguns esclarecimentos. Primeiramente, é sabido que a capacidade civil para a realização dos atos dos atos da vida comum, incluindo o casamento, só é alcançada com maioridade, que neste ponto tanto a lei penal como a civil são uníssonas em estabelecer 18 anos. Acontece que em especial sobre o casamento, fez a legislação civil por estabelecer que os menores de 18 anos, porém maiores de 16, já tinham alcançado aquilo que se denominou de idade núbil, ou seja, se preenchido algumas exigências legais poderia um indivíduo (relativamente capaz) casar-se.

Ocorre que pela leitura do artigo 1520 do CC, verifica-se haver na sua segunda parte uma espécie de exceção da exceção, pois cuidou por estabelecer situações onde mesmo o indivíduo sendo absolutamente incapaz, não tendo, portanto, atingido a idade núbil, ainda sim poderá contrair casamento. Ficando condicionado quando: 1) for verificada uma gravidez; ou 2) Para que de fato pudesse o agressor sexual ser beneficiado pela extinção de punibilidade.

Até ai tudo bem, vez que tais conclusões chegam a ser óbvias dada à clareza solar que possuem o citado artigo. No entanto, a altercação começou a surgir justamente quando a citada Lei 11.106/05, revogou expressamente os incisos VII e VIII do art. 107 do CP, que faziam referência à causa extintiva de punibilidade, mas sem fazer qualquer menção à disposição do artigo 1520 do CC, que estar em “vigor” até hoje e prevendo o casamento entre menores de 16 anos de idade, ou seja, absolutamente incapazes, desde que: “para evitar imposição ou cumprimento de pena criminal”.

Acertadamente, tem a doutrina e jurisprudência consubstanciado entendimento no sentido que tal dispositivo fora revogado tacitamente, haja vista que perdeu seu objeto, ou até mesmo sua razão de ser. Isso porque, ainda que estejamos tratando de menores de idade, cuja lei civil confere o titulo de ABSOLUTANENTE incapazes, no que tange à questão da sexualidade, ou melhor, da capacidade de consentir para a prática de ato sexual, estabeleceu o Código Penal que o maior de 14 anos já tem essa faculdade.

É indiscutível o fato de que se um(a) adolescente com 14 anos consentiu para a prática de atos libidinosos, que hoje não necessariamente precisa ser a conjunção carnal, não há o que se falar em crime, e muito menos o que erradamente vem se denominando “pedofilia”. Fato é que se ainda estivesse em vigor os incisos que conferiam a extinção de punibilidade, ainda sim, a norma do artigo 1520 do CC, não seria aplicada posto que se um maior de 14 anos e menor 16 consente para a praticada o ato, por consequência não há o que se falar em sanção penal. 

De igual forma, considerando a revogação de tal institutos, bem como a permanência do artigo 1520 do CC, é de fácil constatação que muito embora a norma civil continue a fazer a mesma previsão, estando formalmente em vigor, mas materialmente revogada, fato é que hoje ela não possui qualquer aplicabilidade, vez que sua eficácia sempre dependeu da norma que existia no artigo 107 do CP.

Grande foram às mudanças, principalmente no seu aspecto social. Porém, necessárias são ainda muitas outras. Mesmo assim, não se pode negar que principalmente o código penal tem mudado sua forma de ser, passando a ser mais condizente com a constituição, não de forma plena, mas muito melhor que antes.

Não custa lembrar, e por certo torcer que os juristas que estão formando a comissão de reforma do Código Penal, possam de fato visualizar e corrigir todas as mazelas que o direito penal traz como cicatriz da própria história do país, e que realmente consigam dar uma nova “cara” para esse direito que ainda é muito elitista. Conforme dito pelo professor Rogério Greco - “O Direito Penal tem cheiro, cor, raça, classe social; enfim, há um grupo de escolhidos, sobre os quais haverá a manifestação da força do Estado.” (Rogério Greco – Direito Penal do Equilíbrio)

5 comentários:

  1. Professor, tenho uma questão de concurso em relação à matéria que ao meu ver está errada, observe e por favor comente-a: Mulher A, ao sair de um bar onde trabalhava, foi constrangida a ter relações com dois homens, B e C. Os dois homens foram devidamente denunciados, porém, no curso do processo a Mulher A casa-se civilmente com homem B. Atente sobre a suposta resposta correta.

    O juiz deverá declarar extinta a punibilidade de ambos os acusados.
    Qual seu comentário sobre a Questão professor? E qual seria a nomenclatura correta?

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    1. Prezado Mardonio Sousa Bem, essa questão deve ser analisada com cautela. Como bem sabemos a natureza jurídica da ação penal envolvendo os crimes contra a dignidade sexual, em especial o estupro (art.213 do CP), foi alvo de algumas modificações nos últimos anos. Hoje, sendo a vítima capaz considera-se que o crime é de ação penal pública condicionada a representação. O que aparentemente é o caso da questão. Como foi dito no artigo acima, atualmente não mais existe a figura do casamento como sendo causa extintiva de punibilidade para o crime de estupro. Todavia, por se tratar de caso cuja ação penal é pública condicionada a representação, caso a vítima se retrate da representação feita antes do oferecimento da denúncia (art.25 do CPP) a persecução criminal não prosseguirá. Pelo que observa, não houve por parte da vítima um retratação antes do oferecimento da denúncia, posto que no enunciado que você trouxe diz que: “no curso do processo a Mulher A casa-se civilmente com homem B”. .Na verdade não fala sequer em representação. Aparentemente essa questão deve ser melhor analisada. Mas, repito, isso é algo que deve ser analisado com cuidado, não pelo fato de ter havido o casamento, mas sim por todas as outras questões que circundam o fato, como por exemplo, a representação. Caso o gabarito da questão tenha considerado como correta a alternativa que apontava para o casamento como causa extintiva de punibilidade. Essa questão deve ser anulada. Forte Abraço!

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    2. Fico muito grato por essa detalhada explicação, só confirma o que eu suspeitava, bom dia professor e um feliz ano novo.

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  2. Professor, mais uma vez veio pedir sua ajuda em uma polêmica questão.
    Homem A rouba uma joalheria e retira em 50.000 reais. Preso em flagrante, A é condenado a prisão, fatalmente no decorrer da pena ele morre. Porém seu filho B recebeu uma soma de 20.000 de seu pai A. Nesse caso o filho B é obrigado a restituir os 50.000 reais, mesmo que ele não os tenha?

    Bom dia professor

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    1. Prezado, essa questão deve ser vista sob dois prismas. Primeiro, sob o enfoque do direito penal, caso se prove durante a instrução que determinado valor é originário de ilicito penal, haverá o perdimento dos valores, independentemente de quem os detenha. Repito, desde provada a ilegalidade.
      O outro enfoque é o civil, mais condizente com sua pergunta. No caso de herança, quem responde pelas dívidas deixadas pelo de cujus é o seu espólio, isto é, se houver herança suficiente paga, do contrário não.
      Prezado, fique a vontade para fazer novos questionamentos.
      Abraço!

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