Fabricio da Mata Corrêa
Muito embora tal colocação possa hoje parecer divorciada da realidade,
principalmente pela nova importância que fora dada aos crimes que antigamente
eram classificados como contra os costumes, mas que hoje graças à nova ótica
constitucional, são chamados de crimes contra a dignidade sexual, pautando-se
fortemente na dignidade da pessoa humana.
A discussão que ora se inicia é justamente porque até pouco tempo atrás,
ainda se tinha elencado como dentre as causas extintivas de punibilidade, o
casamento entre agressor e vítima de crimes sexuais. Na verdade essa era uma
triste realidade que até pouco tempo ainda estava em vigor, mas que com a
revogação outras discussões surgiram. E isso estaremos vendo de forma bem
simplificada.
Doravante, para entender o motivo de tal vênia legislativa é necessário
que se volte no tempo, mais especificamente para a década de 40 (1940), ano em
que se promulgou por meio de decreto lei nosso atual Código Penal. Sob o manto
de uma sociedade extremamente patriarcal a mulher que nada mais era do que um
objeto ou propriedade tanto do pai como do marido, não recebeu por parte da
legislação o devido cuidado, e tampouco o merecido respeito, principalmente no
que tangia à sua vontade sexual.
Até porque não era esse o bem jurídico a ser tutelado, mas tão somente a
preservação de um modelo moral de sociedade que pouco se falava em sexo. Tanto
que os tipos penais visavam tão somente fazer com que os costumes daquela
sociedade, ou seja, aquilo que naquela época era tido como moralmente correto,
não fossem violados, como por exemplo: sexo antes do casamento; casar-se já
estando a mulher deflorada ou então grávida, enfim eram aspectos não ligados à
vontade da mulher ou se ela consentiu ou não para o ato, mas sim para as consequências
morais que essa prática traria para sociedade.
E pensando justamente em toda essa repercussão social, foi que o
legislador da época julgou por bem desenvolver um meio ou um caminho que
visasse, não propriamente desfazer, mas pelo menos encobrir as marcas deixadas.
Todavia, para se compreender essa ideia, deve-se analisar tal situação pela
ótica da época, ou seja, em 1940 era socialmente aceito uma mulher se casar não
sendo mais virgem, ou então casar já estando grávida. Na maioria das vezes o
simples fato do pai ter uma filha em casa sem conseguir para ela um casamento, já
era isso motivo suficiente de vergonha, quem dirá se essa filha tivesse sido
vítima de violência sexual.
Outrossim, não custa relembrar que sobre o bem juridicamente tutelado,
notem que falava-se a lei em crimes contra os costumes, ou seja, visava tão somente fazer com que os costumes
sociais daquela época fossem preservados.
E justamente por ser assim é que em determinados casos o fato do
agressor aceitar-se casar com a vítima, já era suficiente para se excluir sua
punibilidade. E note que sequer se falava ou se cogitava na possibilidade da
vítima manifestar sua vontade, até porque em muito dos casos o casamento era
imposto pela própria família, tudo para que tal ato não repercutisse
socialmente de forma à denegrir não só a imagem social da vítima, como também
da própria família.
Logo, havendo o casamento entre agressor e vítima, não se poderia falar
em sanção penal, justamente pela força da norma do artigo Art. 107 do Código Penal que
enumerou esse casamento dentre as causas extintivas de punibilidade. Tendo
feito da seguinte forma:
Art. 107 - Extingue-se a punibilidade:
VII - pelo casamento do agente com a vítima,
nos crimes contra os costumes, definidos nos Capítulos I, II e III do Título VI
da Parte Especial deste Código;
VIII - pelo
casamento da vítima com terceiro, nos crimes referidos no inciso anterior, se
cometidos sem violência real ou grave ameaça e desde que a ofendida não
requeira o prosseguimento do inquérito policial ou da ação penal no prazo de 60
(sessenta) dias a contra da celebração.
Tal espécie extintiva de punibilidade era o reflexo perfeito do modelo
patriarcal que imperava na época. O legislador no seu entender, havia
encontrado uma maneira perfeita do agente agressor minimizar as sequelas (leiam-se
MORAIS) produzidas por sua conduta.
Muitos foram os casamentos que se originaram por meio desse instituto, e mais o
que se é possível imaginar que quando determinado rapaz estivesse interessado
em determinada moça, mas esta não o correspondesse, ao invés de insistir na
conquista, se o objetivo era o casamento bastaria que ele a violentasse que em
seguida o casamento seria a solução viável. Claro, que não se tem dados sobre
essa prática, mas pelo que se vê é fácil se chegar em tal conclusão.
Por mais distante que tais conceitos possam parecer frente a atual
realidade, é imperioso destacar que isso ainda vigorara até o ano de 2005,
quando só então com o advento da lei 11.106/05, é que esse cenário sofreu
grandes e necessárias mudanças, estando tais alterações voltadas paras as questões
que até então se denominada “dos crimes
contra os costumes”.
Beira ao absurdo imaginar que num caso de violência sexual, onde um
homem tenha constrangido uma mulher a ter com ele relação sexual, a melhor
solução que se encontre é casar justamente o agressor com a vítima. Volta-se a
chamar a atenção para o fato que de pouco importava a vontade da mulher, mas
tão somente sua reputação, até como de mulher honesta frente à sociedade.
Com o advento da referida lei, figuras quase folclóricas deixaram de
existir, como por exemplo, o tipo penal do já revogado do crime de adultério,
ou então o crime de sedução, e como não voltar a falar da “mulher honesta”,
conceito este que por anos esteve a permear o ideário penal, e que de certa
forma estabeleceu um preconceito legal entre aquilo que se considerava mulher
honesta e não honesta. Relembrando e ratificando mais uma vez que os crimes
tratavam dos costumes e não da liberdade ou dignidade das pessoas,
principalmente das mulheres.
Os tipos citados eram:
Voltando para a discussão proposta, outro ponto positivo com o advento
da Lei 11.106/05, foi de fato a revogação dos incisos VII e VIII do artigo 107
do CP, que até então eram responsável por dar guarita à extinção de
punibilidade pelo casamento.
Mas o que se questiona agora, depois da revogação de tal dispositivo
legal não é nem sua criação, posto que conforme já falado isso se adequava
perfeitamente aos padrões morais da época, mas o que realmente chama a atenção
é o fato de que tal dispositivo perfilou por anos ao lado de princípios constitucionais
e dentre eles o da dignidade da pessoa humana.
Como que poderia se sentir uma mulher que além de violentada, ainda
teria que se conformar que deveria conviver maritalmente com seu agressor? Onde
foi a parar a dignidade da pessoa humana???
Mas cabe esclarecer que a extinção de punibilidade estava estritamente
condicionada ao casamento. Motivo pelo qual a extinção de punibilidade vista no
artigo 107 do CP, esta condicionada a uma interpretação sistemática com a norma
do artigo 1520 do Código Civil, que assim dispõe até hoje:
Art. 1.517. O homem e a mulher com dezesseis anos podem
casar, exigindo-se autorização de ambos os pais, ou de seus representantes
legais, enquanto não atingida a maioridade civil.
Art. 1.520. Excepcionalmente, será permitido o casamento
de quem ainda não alcançou a idade núbil (art. 1517), para evitar imposição ou cumprimento de pena criminal ou em
caso de gravidez.
É importante dizer que tamanha era a força do modelo patriarcal, que
mesmo tendo sido deixado de lado, ainda se é possível notar várias “cicatrizes”
que o mesmo deixou, como por exemplo, o próprio artigo 1520 que mesmo tento
sido deixado de lado, alguns até dizendo ter havido uma revogação tácita no que
tange à sua 2ª parte, mas fato é que esta em vigor até hoje, muito embora não
seja mais aplicado.
Para Tanto faz-se necessário, alguns esclarecimentos. Primeiramente, é
sabido que a capacidade civil para a realização dos atos dos atos da vida
comum, incluindo o casamento, só é alcançada com maioridade, que neste ponto
tanto a lei penal como a civil são uníssonas em estabelecer 18 anos. Acontece
que em especial sobre o casamento, fez a legislação civil por estabelecer que
os menores de 18 anos, porém maiores de 16, já tinham alcançado aquilo que se
denominou de idade núbil, ou seja, se preenchido algumas exigências legais
poderia um indivíduo (relativamente capaz) casar-se.
Ocorre que pela leitura do artigo 1520 do CC, verifica-se haver na sua
segunda parte uma espécie de exceção da exceção, pois cuidou por estabelecer situações
onde mesmo o indivíduo sendo absolutamente
incapaz, não tendo, portanto, atingido a idade núbil, ainda sim poderá contrair
casamento. Ficando condicionado quando: 1)
for verificada uma gravidez; ou 2) Para
que de fato pudesse o agressor sexual ser beneficiado pela extinção de punibilidade.
Até ai tudo bem, vez que tais conclusões chegam a ser óbvias dada à
clareza solar que possuem o citado artigo. No entanto, a altercação começou a
surgir justamente quando a citada Lei 11.106/05, revogou expressamente os incisos
VII e VIII do art. 107 do CP, que faziam referência à causa extintiva de
punibilidade, mas sem fazer qualquer menção à disposição do artigo 1520 do CC,
que estar em “vigor” até hoje e prevendo o casamento entre menores de 16 anos
de idade, ou seja, absolutamente incapazes, desde que: “para evitar imposição ou cumprimento de pena
criminal”.
Acertadamente, tem a doutrina e
jurisprudência consubstanciado entendimento no sentido que tal dispositivo fora
revogado tacitamente, haja vista que perdeu seu objeto, ou até mesmo sua razão
de ser. Isso porque, ainda que estejamos tratando de menores de idade, cuja lei
civil confere o titulo de ABSOLUTANENTE incapazes, no que tange à questão da
sexualidade, ou melhor, da capacidade de consentir para a prática de ato sexual,
estabeleceu o Código Penal que o maior de 14 anos já tem essa faculdade.
É indiscutível o fato de que se um(a)
adolescente com 14 anos consentiu para a prática de atos libidinosos, que hoje
não necessariamente precisa ser a conjunção carnal, não há o que se falar em
crime, e muito menos o que erradamente vem se denominando “pedofilia”. Fato é
que se ainda estivesse em vigor os incisos que conferiam a extinção de
punibilidade, ainda sim, a norma do artigo 1520 do CC, não seria aplicada posto
que se um maior de 14 anos e menor 16 consente para a praticada o ato, por
consequência não há o que se falar em sanção penal.
De igual forma, considerando a revogação de
tal institutos, bem como a permanência do artigo 1520 do CC, é de fácil
constatação que muito embora a norma civil continue a fazer a mesma previsão, estando
formalmente em vigor, mas materialmente revogada, fato é que hoje ela não
possui qualquer aplicabilidade, vez que sua eficácia sempre dependeu da norma
que existia no artigo 107 do CP.
Grande foram às mudanças, principalmente no
seu aspecto social. Porém, necessárias são ainda muitas outras. Mesmo assim,
não se pode negar que principalmente o código penal tem mudado sua forma de
ser, passando a ser mais condizente com a constituição, não de forma plena, mas
muito melhor que antes.
Não custa lembrar, e por certo torcer que os
juristas que estão formando a comissão de reforma do Código Penal, possam de
fato visualizar e corrigir todas as mazelas que o direito penal traz como
cicatriz da própria história do país, e que realmente consigam dar uma nova “cara”
para esse direito que ainda é muito elitista. Conforme dito pelo professor
Rogério Greco - “O Direito
Penal tem cheiro, cor, raça, classe social; enfim, há um grupo de escolhidos,
sobre os quais haverá a manifestação da força do Estado.” (Rogério Greco –
Direito Penal do Equilíbrio)