A
VERDADE REAL NO PROCESSO PENAL. UMA VERDADE OU UMA MENTIRA?
Fabricio
da Mata Corrêa
Por muito tempo tem-se firmado
o equivocado entendimento que vigora no Processo Penal Brasileiro o princípio
intitulado “da verdade real”, que nada mais é que uma verdadeira fábula sobre a
possibilidade do magistrado, com base apenas nas provas que lhe são
apresentadas, enxergar perfeitamente tudo que teria ocorrido na prática de um
fato criminoso pretérito, e aduzindo toda essa “verdade” em forma de sentença.
Na verdade, a função que o
referido princípio tem desempenhado no direito brasileiro diverge e muito
daquilo que doutrinariamente e filosoficamente se prega, isso porque ele não
guarda qualquer relação com a obtenção de uma verdade processual, muito pelo
contrário, o que se tem visto é um uso indiscriminado de tal princípio, sendo
usado como verdadeira cortina de fumaça na tentativa escusa de se mascarar todo
caráter inquisitivo do Código de Processo Penal (CPP).
Até porque, o que seria uma
verdade real? Ora, considerando que o julgado toma sua decisão pautando-se
apenas naquilo que lhe é apresentado durante a instrução criminal, não há o que
falar em verdade real, mas tão somente em verdade processual, que se exprime
pela conclusão obtida após analise daquilo que foi apresentado. O que a seu
turno diverge totalmente daquilo que efetivamente seria a verdade real, que de
tão complexa, nunca poderá ser experimentada numa instrução processual, por
melhor que esta seja feita.
A dita verdade real é tão
complexa, que nem mesmo uma pessoa presenciando a prática de um fato criminoso,
pode-se considerar capaz de expressar toda verdade envolvida na execução do
citado crime, isso porque ao presenciar o fato ela simplesmente o faz em
relação a um único momento dentro de uma cadeia que consubstancia o evento
criminoso. Nem mesmo o agente praticante da infração penal, que teoricamente
possui conhecimento sobre o inter criminis, possui controle de tudo que ocorre
na execução, e por isso nem ele é capaz de passar toda essa verdade.
Fica claro, portanto, que não
se pode atribuir verdade real em nenhum julgado criminal. Principalmente, porque
além da complexidade envolvida, existe ainda o fato dando conta que paulatinamente
direitos e garantas são violados com autorização legal, sob o argumento
falacioso de se buscar a verdade.
Não é segredo que tanto o Código
de Processo Penal como o Código Penal foram forjados sob a ótica de um país que
não conhecia nenhum dos direitos e garantias que se tem hoje, muito pelo
contrário, em meio da década de 1940 o que se via era um país cada vez mais
inclinado à seguir os passos do fascismo doutrinado na Itália por Benito
Mussolini. Justamente por isso e por toda essa influência, que não é difícil de
visualizar especialmente nos diplomas em referências, por exemplo, sinais claros
de direito penal de autor, crimes abstratos, direito penal do inimigo etc.
Também é herança desse governo
totalitário de 1940 o sistema dito inquisitivo, que embora haja reservas por
parte da doutrina dizendo que o mesmo já não existe, ou, que existe apenas na
fase de inquérito, fato é que o mesmo vigora até a presente data e não somente
em fase policial. Tal sistema é caracterizado por não prestigiar, por exemplo, o
contraditório e a ampla defesa, a publicidade dos atos, a separação entre
julgador e acusador, enfim ele não respeita nenhuma das garantias que hoje se
tem.
E pelo fato do CPP possuir regramentos
inquisitoriais, isso só tem contribuído para o fortalecimento e a constante
invocação dessa verdade real, para que assim certos atos fossem justificados. O
que por outro lado, nos revela a correta finalidade dessa verdade, que é tão
somente mascarar todo o caráter inquisitivo que transborda dos regramentos ali
contidos. Sempre que o lado inquisitivo do processo penal fala mais alto, é
comum e quase que natural se invocar o princípio da verdade real, para se
justificar determinada ação, dizendo ser ela em prol de um bem maior.
Agora, que bem pode ser maior
que a própria justiça? Seria a verdade??
Mas não seriam elas sinônimas no processo???
É inegável que por anos, muitos
absurdos foram praticados com aval da lei, e tolerados sob a escusa de serem atos
necessários para a obtenção de uma verdade, que diga-se, não basta ser por si
só ser verdadeira, deve ainda ser real.
Para exemplificar, vale trazer
em discussão o artigo 156 do CPP, que em seu conteúdo normativo, autoriza o magistrado
a “descer” do seu local de trabalho, e assim como qualquer parte processual também
produzir provas.
Pensemos então, por que se
teria um artigo de lei autorizando o magistrado produzir provas para fortalecer
seu convencimento, se na verdade, havendo dúvida o correto seria ele absorver?
Certa vez, no exercício do seu
brilhante magistério, lecionando sobre garantismo penal e o processo penal como
instrumento legitimador dos princípios constitucionais, disse o professor Ary
Lopes Junior, que não se pode permitir que no atual cenário constitucional,
ainda se aceite que o juiz criminal, além da função de julgador, também cumule
a tarefa de produzir provas tal como uma parte no processo, isso é inaceitável,
pois se hoje ele produz uma prova para auxiliar a defesa, nada impede que
amanhã ele também o faça para ajudar a acusação.
Ainda sobre o artigo 156 do
CPP, a defesa que lhe é feita resumi-se em verdade real, ou seja, seria o magistrado
atuando em prol do seu livre convencimento para que assim alcançasse a verdade
real dos fatos. Tudo estaria certo se não fosse um porém, o convencimento de um
juiz criminal, diferente do que é visto na área cível, ele não é livre, muito
pelo contrário ele deve permanecer adstrito àquilo que lhe é apresentado pela
acusação e pela defesa. Lembrando sempre, que é a acusação quem deve fornecer
substratos para sua imputação, e não o contrário.
Caso o magistrado considere insuficiente
aquilo que lhe foi apresentado pelas partes, principalmente pela acusação, ao
invés de agir como uma terceira parte processual, deveria sim, por força do
princípio da dúvida absolver aquele que esta sendo acusado sem provas, pelo
menos sem provas que sejam capazes de convencer o julgador do merecimento de uma
condenação.
A verdade real defendida por
muitos processualistas, de fato só seria possível se realmente tudo que
aconteceu sobre o evento criminoso, pudesse ser fidedignamente reconstituído, em
toda sua complexidade, e levado ao conhecimento do julgador para que assim não
tivesse ele apenas uma compreensão da ocorrência do delito, mas que comprovadamente
dominasse a verdade dos acontecimentos. Veja que não estamos falando em reconstituição
de crime nem em nada do gênero, mas sim numa efetiva volta no tempo.
Embora no campo teórico se persista
com discurso da verdade real, o que se verifica na prática é muito diferente e
só confirma ser ela inatingível, principalmente em processos que têm sofrido
com a ação do tempo, e que, além disso, não possuem provas, ou então se
socorrem apenas de testemunhas que depois de anos chegam em audiência e dizem:
eu acho, parece ter sido ele, ou simplesmente que não fazem a menor ideia de
como tais fatos ocorreram, pois realmente esqueceram.
Enfim, aquilo que por ventura
puder ser explicado, seja da forma que for, possibilitará a quem receba tais
informações, ou seja, o julgador, a idealização de uma fraca percepção do que
de fato teria ocorrido. Aliás, se nem mesmo aquele que presenciou uma situação
delituosa é capaz de entender toda sua complexidade, quem dirá aquele que só
toma conhecimento por meio de terceiros. Estes que além de dizerem aquilo que acreditam
saber, inconscientemente introduzem informações aos fatos, para preencherem lacunas,
isso tudo por conta exclusiva da imaginação.
Como que com esse cenário é
possível dizer que há verdade real? Que tipo de verdade é possível auferir
desses meios?
O que se acostumou a ensinar,
dizer e se considerar como sendo verdade real, nada mais é do que um juízo de
melhor impressão ou de impressão mais robusta, que não conduzem, mas
simplesmente induzem o julgador numa linha de raciocino mais próxima o possível
daquilo que realmente tenha ocorrido, possibilitando assim o estabelecimento de
um decreto, seja condenatório ou absolutório, que não terá de verdade real, mas
sim, será simplesmente reflexo daquilo que foi possível se auferir dos dados
apresentados.
Um crime, justamente por ser
algo que inexoravelmente sofre com a ação do tempo, nunca será algo que poderá
ser levado ao conhecimento de outra pessoa de forma plena, ou melhor, tudo que
circunda a órbita do conhecimento de uma infração penal, JAMAIS poderá ser levado ao conhecimento de quem quer que seja. O
tempo não volta, e o que já passou só torna mais difícil o trabalho de rememorar.
O processo penal não pode
fundamentar sua existência em prol de uma verdade que ninguém sabe ao certo o
que seria. Se alguém tiver de ser condenado, que seja pelo o que realmente se viu
no conjunto probatório, e não condenado por ser essa a verdade real. Aquele que
é condenado por conta dessa dita verdade, deve ter em mente que sua condenação
foi de fato conveniente, ou aparentemente acertada.
Por tudo isso é que não se deve
afirmar a existência de uma verdade real, pode até haver uma verdade de cunho
processual ou até mesmo prático, mas afirmar que ela é real, isso com certeza é
mais que um exagero, é de fato uma mentira.