Fabricio da Mata Corrêa
Com aproximados três anos que entrou em vigor a lei
12.760/12, apelidada de “nova lei seca”, e por
já ter sido possível neste período se fazer, com mais calma, uma reflexão
frente a todas as mudanças introduzidas, objetivos pretendidos e alcançados, pensamos
que é hora de reacender a discussão sobre a natureza jurídica do crime do
artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro. Perigo concreto ou abstrato?
Antes, porém, vale apenas relembrar que a antiga
redação do artigo 306 trazia em seu preceito primário a quantidade exata de
álcool que deveria ser verificada para que o crime estivesse configurado.
Significa dizer que a quantidade de álcool que constava da redação do artigo
assumia naquela oportunidade caráter de elementar típica.
Daí a problemática que se verificava quando o
motorista se recusava a fazer os exames periciais (bafômetro e ou exame de
sangue), posto que sem essa prova técnica (pericial) capaz de indicar a exata
quantidade da substância no organismo do motorista, a conduta não era considerada
típica, independentemente das reais condições do motorista, ou seja, o Estado
não poderia puni-lo haja vista que a elementar típica não havia sido demonstrada.
Todavia, quando o exame era feito e a quantidade
de álcool comprovada por prova técnica, ai não havia qualquer discussão sobre a
aplicação da norma, não se observava sequer as reais condições do motorista, se
estava bem ou não.
Nessa época era possível dizer: “crime de embriaguez
ao volante”, haja vista que a embriaguez era sim elementar típica, ou seja, era
o que dava forma ao tipo penal. O que se buscava, portanto, era apenas confirmar
o estado de embriaguez, desprezando-se nesse momento qualquer risco que o
motorista houvesse gerado. Veja, ainda que o motorista não tivesse gerado risco
algum ele ainda sim responderia pelo delito.
Desse modo, de forma uníssona, passou a considerar
o crime do artigo 306, “embriaguez ao volante”, como sendo de perigo abstrato,
isto é, a sua consumação não estava condicionada à produção de qualquer risco.
Dirigiu veículo automotor em via pública estando com
concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis)
decigramas já era suficiente para consumar o delito. Ocorre que HOJE isso não
mais ocorre!
Após as alterações promovidas pela Lei
nº. 12.760/12, foi possível notar grandes mudanças no trato do antigo crime de
“embriaguez ao volante”, em especial a mudança sobre a elementar típica que
acarretou especialmente na modificação da natureza jurídica do crime.
Se antes era possível dizer: “crime de embriaguez
ao volante”, hoje, digamos o termo tornou-se inadequado, posto que atualmente a
redação do artigo 306 não contempla como elementar qualquer quantidade de
álcool e ou de outras substâncias. Ao invés disso, trouxe agora como elementar
típica a alteração da capacidade psicomotora do motorista. A quantidade de
álcool que antes era elementar típica, 0,6 decigramas por litro de sangue, hoje
foi rebaixada a meio de prova, isto é, hoje é apenas mais um dos muitos meios
que a “nova” lei trouxe para se comprovar a alteração da capacidade
psicomotora.
Um dos objetivos da Lei nº 12.760/12 foi justamente
facilitar a verificação da infração, e isso se deu não só com retirada da
antiga elementar quântica dos 0,6 decigramas, como também com a criação de
muitos outros meios de prova, como, por exemplo, imagens, vídeos, sinais etc.
Enfim, hoje para comprovar a consumação do delito,
basta verificar se o agente esta ou não com sua capacidade psicomotora alterada. E essa é a questão, o fato de
estar ou não embriagado ou mesmo a quantidade de álcool no seu organismo não é mais
relevante, pois o que importa agora é verificar se a capacidade psicomotora do
motorista esta ou não alterada. Significa dizer que a lei não esta presa a
quantidade de álcool como antes, por exemplo, na situação do indivíduo que dirige
seu veículo com a capacidade psicomotora alterada fazendo zig zag na via, independentemente
do motivo da alteração (drogas/álcool etc.), o crime estará configurado, mesmo
que ele se recuse a fazer o etilômetro (bafômetro) ou o exame de sangue.
Outra situação, o agente que dirige seu veículo
após fazer uso de bebida alcoólica, mas que continua com sua capacidade de
psicomotora inalterada, dirigindo normalmente, considerando ser a natureza do
delito de perigo concreto, ele não poderá ser submetido à norma do artigo 306.
Atualmente esta claro que o risco que antes era
ignorado para a consumação do crime, hoje é de verificação necessária, é
imprescindível que se encontre o risco na forma com que o individuo conduzia
seu veículo. Sem a verificação do potencial de dano expressado na forma com que
o individuo conduzia seu veículo após ter comprometido sua capacidade
psicomotora, zig zag, por exemplo, não é possível dizer que houve o crime do
artigo 306.
Por isso que não se pode mais admitir ser esse
crime de perigo abstrato, antes sim, mas hoje não. Nem mesmo de perigosidade
real como afirmamos logo que a lei entrou em vigor.
Frente a essa necessidade de comprovação da
alteração da capacidade psicomotora é certo dizer ser esse crime de perigo
concreto, pois é curial que o motorista produza um eminente risco à segurança
viária ao dirigir de forma alterada.
A ideia da perigosidade real é boa, mas não
responde de forma satisfatória a todas as dúvidas, por exemplo, o individuo que
dirige seu veículo embriagado e ao ser parado em uma blitz faz o bafômetro e se
constata que ele estava com, por exemplo, 0,35 miligramas de álcool por ar
expelido dos pulmões, o que em tese já seria suficiente para autuá-lo pelo
crime, mas registre-se que sua capacidade psicomotora não foi alterada. E ai?
Pela natureza concreta não houve crime. Pela perigosidade real ele até poderá
responder pelo crime. Pelo perigo abstrato, ao arrepio da lesividade que emana
da Constituição, o crime estaria configurado.
Muito embora muitos doutrinadores ainda se
posicionem pelo perigo abstrato, inclusive a jurisprudência do país de forma
uníssona, fato é que com as mudanças feitas na lei, as teses que HOJE se pode
aceitar são: perigo concreto ou então perigosidade real.
O motivo da jurisprudência ter se mantido inalterada
mesmo com as mudanças é simples: Caso ela reconhecesse que o crime do artigo
306 é de perigo concreto ou de perigosidade real, o objetivo principal da mudança
que seria facilitar a criminalização do indivíduo embriagado que se recusava a
contribuir, não seria atingido. Seguindo a linha que defendemos, a situação
continuaria a mesma, pois não basta a verificação do álcool, é necessário ver
as reais condições do motorista, isto é, sua capacidade psicomotora. Impõe
destacar que tal prática é aviltante e completamente proibida no Brasil por
violar frontalmente o principio da reserva legal.
Importante que se diga que não estamos defendendo a
impunidade dos criminosos, não é isso. O proposto é apenas uma reflexão crítica
sobre o trabalho do poder legislativo, que neste caso, não foi feliz em
modificar a redação da lei. Fato que agora vem obrigando o judiciário a fechar
os olhos para questões basilares do direito penal, que no caso, é o estudo das
elementares típicas.
E mais, a perpetuidade do perigo abstrato se deve
ainda a interpretação in malam partem
que vem sendo feita sobre o art. 306 do CTB, isto é, mesmo estando clara a mudança
da elementar típica, o judiciário continua interpretando a norma para
prejudicar o acusado.
Se, por outro lado, a mudança houvesse retirado tão
somente do artigo 306 a quantidade de álcool necessária para a configuração do
delito, que diga-se, tal como era em 1997 quando entrou e vigor o CTB,
certamente não haveria mais discussão sobre a natureza jurídica do delito, pois
como era no início ele seria novamente de perigo concreto, mas com a mudança, o
crime passou a ser tudo, menos de perigo abstrato.
Redações:
1997 - Art. 306.
Conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou
substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de
outrem:
2008 - Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, estando
com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis)
decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que
determine dependência: (Redação dada pela Lei nº 11.705, de 2008)
2012 - Art. 306. Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora
alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que
determine dependência: (Redação dada pela Lei nº 12.760, de 2012)
Por isso que não podemos mais dizer crime de
“embriaguez ao volante”, posto que a embriaguez não mais constitui por si só o
crime, hoje ela passou a ser mero meio de prova. Os olhos do aplicador do
direito não podem ficar engessados apenas para o álcool, até porque existem
várias outras drogas que podem reduzir e ou alterar a capacidade psicomotora do
motorista. Esta por sua vez, como nova elementar é que deve ser observada,
primeiro se observa como o motorista esta conduzindo, se estiver alterado o
crime estará configurado, a partir daí se buscará o motivo da alteração apenas
para fins justificantes.
Referências
BRASIL,
Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997. Disponível em> http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9503.htm< Acesso em 05 de abril de 2015.
CORRÊA,
Fabrício da Mata. As primeiras impressões sobre a “nova” lei seca. Disponível
em: http://fabriciocorrea.jusbrasil.com.br/artigos/121941386/as-primeiras-impressoes-sobre-a-nova-lei-seca> acesso em 24 de abr. de 2015
GOMES,
Luiz Flávio; Bem, Leonardo Schmitt de. Nova Lei Seca: Comentários à Lei 12.760,
de 20-12-2012. São Paulo: Saraiva 2013.
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