Até que ponto a liberdade pode ser
restringida sem que isso configure violação ao direito constitucional?
Essa pergunta me tem sido recorrente depois
que a Câmara Municipal de Guarapari, cidade do litoral do Espírito Santo,
aprovou em fevereiro deste ano a Lei nº 3.729, que esta sendo chamada de “Lei
do Menor”, pois proíbe menores de dezesseis anos de idade de estarem fora de
suas casas, sem seus responsáveis, após às 23 horas.
A lei que esta sendo bem aceita por
alguns, mas repudiada por outros vem de fato gerando muita discussão,
principalmente sobre o viés constitucional, nos permitindo desse modo estender
a discussão para o âmbito nacional.
A importância de se falar sobre o
assunto é justamente porque se sabe que no Brasil há à prática da cópia
legislativa entre os entes federados. Uma lei criada e bem aceita em um estado,
possui grande possibilidade de ser copiada para também ser implementada em
outro. Por isso, antes que cidades e estados passem também a proibir que
menores de idade, não infratores, fiquem na rua após das 23 horas,
melhor sedimentar posição sobre o assunto.
Se por um lado a lei nos chama à atenção
para o problema da criminalidade estar cada vez mais ligada ao público jovem,
nos remetendo à necessidade de controlarmos melhor os menores a fim de que eles
não se envolvam em problemas dessa natureza, por outro, nos aguça a curiosidade
e nos provoca a fazer os seguintes questionamentos: primeiro, considerando a
iniciativa da lei, seria constitucional uma imposição dessa natureza criada
pelo poder legislativo de um município?; Segundo, seria também constitucional
restringir o direito de ir e vir bem como o de permanecer em um local, pautado
tão somente num discurso de lei e ordem?
Salientando apenas que as medidas
comumente vistas nos Estados que adotam esse discurso tem por cerne não
respeitar limites quando o assunto é atingir certo resultado, principalmente
quando tal objetivo já se mostrou distante pelas vias convencionais.
É sabido que os menores, crianças e ou
adolescentes, estão cada vez mais cedo se envolvendo no mundo da criminalidade
e algo realmente deve ser feito para que esse cenário possa de fato mudar.
Contudo, deve-se tomar o máximo de cuidado para que nesse “algo a ser feito”
não se pratique abusos, excessos, para que não se crie um estado aparente ou um
medida de exceção para justificar uma prevenção futura. Não se pode prevenir o
mal perpetuando ele mesmo.
Nessa esteira, a pergunta que se mostra
pertinente no momento é a seguinte: em relação a cidade específica de
Guarapari/ES, será que todas as medidas convencionais necessárias (saúde,
alimentação, educação, lazer, meio de profissionalização, acesso à cultura, à
dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar (art.227 da
CF/88)) já foram tomadas, de forma que não restou outra saída a não ser impor
tal restrição?
Vale lembrar que o direito à liberdade
plena não faz distinção entre menor ou maior. Todos são igualmente protegidos.
Sendo assim, o cuidado que se deve tomar agora é também para se evitar que no
futuro, por questão de conveniência e oportunidade, uma medida idêntica seja
criada também para os maiores.
O que a referida lei municipal veio
estabelecer foi o velho conhecido toque de recolher. Algo comum nos regimes
ditatoriais, mas que não coaduna nem um pouco com um Estado democrático como o
Brasil. Essa medida é própria de um Estado dito marginal, que caracteriza-se
justamente por não respeitar as garantias individuais. E é isso que se esta
ensaiando no referido município.
Ademais há outro problema em toda essa
questão que é sobrecarga que essa lei gerará para as forças públicas locais,
uma vez que o cumprimento e a fiscalização do toque de recolher ficarão sob
responsabilidade da polícia militar. Em muitos locais já se reclama que o
efetivo policial não é suficiente para se atender as urgências da sociedade,
quem dirá agora, pelo menos no referido município, em que os policiais além de
prenderem os criminosos ainda terão que recolher crianças e adolescentes.
Outrossim, ainda sobre as consequências,
caso um menor seja encontrado na rua após as 23 horas, independentemente da
aplicação de multa conforme prevê a lei, não será outra medida adotada, senão,
num primeiro momento ser o menor levado para casa pela polícia. Acabando assim
por virar a polícia uma recolhedora de menores não infratores, quase que uma
baba.
Noutro quadro, a sociedade tem dado
claros sinais de que não acredita mais no Estado para resolver o problema da
violência e da criminalidade, tanto é assim que os últimos tem nos revelado uma
população cansada que passou a atacar o mal com o próprio mal, linchando
possíveis autores de crimes, prendendo-os em postes, etc. Aliás, o que se
observa agora com a referida lei municipal é que próprio “Estado” parece não
confiar mais em si mesmo. Pelo menos um de seus poderes, no caso o legislativo
municipal, parece te perdido a confiança no seu próprio trabalho.
Respondendo as indagações feitas no
início, sobre o possível vício de iniciativa, vale destacar o art. 24 da CF/88,
que estabelece como concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal, a
competência para legislar sobre a proteção à infância e à juventude (art.
24, inciso XV). Não se viu neste rol à autorização necessária para que
os municípios também possam trabalhar nessa esteira legislativa.
Mas, ainda que fosse possível, ou
melhor, ainda que tal lei tivesse sido feita por qualquer um dos mencionados
anteriormente, vale lembrar que o processo legislativo não é livre, deve ser
feito com observância de alguns limites que são impostos pela própria
democracia. As leis devem obediência ao povo e, sobretudo à Constituição. Logo,
não há uma lei que possa desrespeitar direitos bravamente conquistados. O
limite, ou melhor, a barreira posta ao legislador neste sentido é a garantia
necessária para se evitar abusos por parte do Estado.
Notem que a análise que fazemos é na
origem, é anterior à própria efetividade da lei, que diga-se já esta em vigor.
Não se esta discutindo se ela conseguirá ou não atender seus objetivos, no
caso, objetivos do legislativo municipal. Ainda que ela possa no futuro gerar
algum resultado positivo, ainda assim, não vale o preço da liberdade. Adulto ou
criança são todos iguais em direitos.
Privar os menores não infratores,
impondo à eles esse toque de recolher é o mesmo que dizer que todos doravante
estarão em um regime de semi-liberdade, ou então que estão livres mas com
cautelares, no caso em especial, a de não poder permanecer na rua depois de
certo horário (recolhimento noturno, vide art.319, inciso V, primeira parte
do CPP).
A política criminal nos tem ensinado que
antes de se atacar o problema com a elaboração de uma lei prematura, deve-se
entender e estudar todos os fenômenos sociais que circundam o fato objeto de
análise. No caso, antes de se fazer uma lei restringindo o direito à liberdade
dos menores não infratores, deve-se perguntar o porquê de estarem na rua até
tão tarde, por onde andam os pais, e principalmente qual o apoio que o Estado
tem dado, ou que pode estar dando às famílias no sentido de melhor
estruturá-las.
A lei municipal 3.729/2014 parece na
verdade ter criado um atalho, posto que ao invés do município cuidar das
diretrizes básicas que a própria Constituição estabeleceu como obrigação do
Estado e direito dos menores, tal como se vê no artigo 227 e parágrafos,
resolveu simplesmente já agir reprimindo. Ao invés de se cuidar hoje para não
ter que punir no futuro, optou simplesmente em reprimir hoje para não fazê-lo
mais severamente amanhã.
Esse mesmo artigo 227 da Constituição
Federal, quando enumera os direitos dos menores elenca dentre eles a liberdade,
que a rigor do art. 5º, §2º c/c art. 60, §4º, inciso IV, ambos da CF/88, deve
sim ser considerada cláusula pétrea. Portanto, o cenário que se tem é que uma
lei municipal esta restringindo direito constitucionalmente previsto, isto é,
esta mitigando um direito que de tão pleno chegou a atingir status de cláusula
pétrea.
É óbvio que tal lei é inconstitucional.
Muito embora não se negue que algo deve ser feito a fim de diminuir a migração
dos menores para o mundo do crime bem como para protegê-los de qualquer mal,
isso não deve ser feito a um preço tão alto.
Não se pode permitir que no Brasil,
recém saído de um período tormentoso que foi a ditadura, que de tão grave até
hoje novos crimes são descobertos, comece a trabalhar com discurso de lei e
ordem como pretende a lei municipal. As cicatrizes da ditadura ainda estão
recentes e foram geradas porque medidas extremadas eram tomadas para justificar
um bem maior.
É preciso tomar cuidado, não se pode
tolerar quaisquer violações ou restrições aos direitos constitucionais. O
perigo da exceção é justamente que ela acabe virando regra!
Com o perdão da analogia empregada,
permitir que diplomas legais excepcionem direitos e garantias
constitucionalmente previstos, e isso em um país recém saído de uma ditadura
militar, seria o mesmo que um “ex-dependente químico”, depois de anos de
sobriedade tornasse a fazer uso da substância que o viciou e o tornou
dependente. O Brasil não pode correr o risco de sofrer novamente com os mandos
e desmandos de um poder autoritário.
Por fim, considerando tudo foi dito,
podemos considerar a lei municipal 3.729/2014 “duplamente” inconstitucional,
tanto por possuir vício formal de iniciativa, como também por violar
frontalmente o direito à liberdade.
Uma lei não pode ser tida como perfeita
se os seus resultados são obtidos em desrespeito à direitos e garantias
constitucionalmente previstos. Ainda que tal lei possa de fato prevenir algo no
futuro, não vale o preço do cerceamento da liberdade de hoje.
É dever do Estado e responsabilidade da
família cuidarem para que os menores não entrem para a criminalidade e que
tenham opções de seguirem no caminho do bem. Mas se de todo caso, optarem pela
criminalidade estará o Estado legitimado a agir com todos os recursos legais a
fim de reprimir e punir o mal feito, mas enquanto não há mal o que se vai
reprimir?
O sucesso na socialização dos menores
não é algo que será atingido com medidas repressivas e até ditatoriais, mais
sim no momento em que o Estado, em todas suas esferas, passar a ter mais
responsabilidade frente ao importante papel que possui que muito antes de
ser repressor deve ser de garantidor.
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