Artigo publicado na Revista JURÍDICA CONSULEX. Ano: XVIII.
Número: 413. 1° de Abril.
O que se tem visto, com muita tranqüilidade,
na prática jurídica criminal, na verdade, já se apresentando até como tendência
ou mesmo “regra”, é a distorção sobre o instituto do dolo, mais especificamente
em sua forma eventual, no sentido de tratar como dolosas situações que
corriqueiramente deveriam, no máximo, serem vistas no campo da culpa.
O Código Penal, em seu art. 18, consagrou
a regra de que os tipos penais devem referência ao dolo, enquanto que a culpa somente
poderá ser invocada quando a lei conceder essa venia. Pois bem, a princípio,
temos então apenas dois institutos: dolo e culpa.
Ocorre que a tipicidade vista apenas pelo
prisma do dolo e da culpa, na prática, era insuficiente para atingir
determinadas condutas de forma a tornar mais clara a formação do injusto penal.
Foi quando a doutrina transformou esses institutos em gêneros, do que se passou
a ter várias espécies, tanto de culpa como de dolo.
A saber, das espécies criadas, tanto
para um como para outro instituto, em regra, não se tinha problema quando de
suas verificações e aplicações, salvo quando determinada situação permeava ao
mesmo tempo o campo da culpa consciente e dolo eventual. Por muito tempo se
travou certa discussão ao tentar estabelecer os limites da culpa consciente e
do dolo eventual, de modo que cada um fosse diferenciado em sua perfeita aplicação.
Quando já parecia haver um consenso
sobre isso, motivado principalmente pelo aumento significativo do número de
mortes no trânsito, toda discussão que até então já havia sedimentado a
aplicação do dolo e da culpa, diga-se, eventual e consciente, passou a seguir
nova tendência, que, pautada em questões outras que não propriamente jurídicas,
tem como objetivo claro estabelecer uma nova espécie de “regra” de aplicação do
dolo eventual, estendendo-o aos casos em que a própria lei estabelece culpa.
Infelizmente, não há melhor exemplo
para se trabalhar essa questão do que os casos de mortes no trânsito. A
propósito, segundo pesquisa realizada pelo instituto Avante Brasil, o Brasil figura
no 4º lugar dentre os países que mais matam no trânsito. É, de fato, uma dura e
infeliz realidade. Contudo, o que não se pode fazer é simplesmente querer
resolver essa questão por meio do Direito Penal.
Atualmente, em decorrência da força e
influência que a mídia possui sobre as várias instituições, quando se fala em
homicídio culposo no trânsito (art. 302, CTB) associado à direção sob
influência de álcool (art. 306, CTB), o cenário de aplicação do dolo e da culpa
sofre grande alteração. É o mesmo que dizer que nasce neste momento uma responsabilização penal objetiva,
posto que basta haver a conjugação dos mencionados delitos para que,
independentemente de haver provas para tanto, já se têm como certas as ideias de que: (i) aquele
que fez a ingestão de álcool foi responsável pelo acidente; (ii) o
fato de beber já coloca o agente em relação de desprezo com o resultado morte.
Para se entender melhor a gravidade do
que esta ocorrendo, imagine uma situação na qual, realmente, um indivíduo
pratique o crime de homicídio culposo no trânsito (art. 302, CTB). Sendo ele autuado
apenas por esse crime terá direito a fiança arbitrada na própria delegacia,
caso não tenha antecedentes, não se poderá sequer impor a prisão preventiva, e,
caso haja condenação no fim do processo, o autor do delito não receberá uma
pena maior que 4 anos.
Por outro lado, pense no mesmo exemplo,
mas inclua o fato de o mesmo motorista estar embriagado e o acidente ter sido
causado pela vítima, a qual não estava embriagada. Nesse caso, pelo que tem
apontando a prática, mesmo não tendo sido responsável pelo crime, em um
primeiro momento, já se imputaria ao motorista embriagado o crime de homicídio
doloso do Código Penal, que, em sua forma simples, admite pena máxima de 20
anos, a fiança só poderia ser vista em Juízo e o processo tramitaria no
procedimento do Júri.
Importante esclarecer que, com tais
argumentos, não se está fazendo a defesa daqueles que bebem e dirigem. O que se
visa demonstrar com os exemplos acima é que na prática, já se presume como responsável
por um acidente de trânsito aquele que tenha feito uso de qualquer tipo de substância
capaz de alterar sua capacidade psicomotora. Essa verificação preliminar de
culpabilidade é que tem possibilitado a aplicação objetiva da responsabilidade
penal. No segundo exemplo, o motorista deveria responder apenas pelo crime do
art. 306, mas por conta dessa verificação equivocada, uma situação que
aparentemente era simples passa a ganhar contorno de dramaticidade, posto que
as consequências de ser autuado por um crime doloso, como o caso do homicídio,
não se compara com aquelas decorrentes do art. 306, tampouco com as verificadas
no art. 302, todos do Código de Trânsito Brasileiro. Esse é o cenário!
Importa ressaltar que o que se diz na
prática por dolo eventual é, na verdade, uma distorção daquilo que simplesmente
seria o dolo direto. Quando alguém deseja um resultado e molda sua conduta com
o fim de atingir o seu objetivo, costuma-se dizer que ela agiu com dolo
direito. De forma completamente diversa, quem age com dolo eventual não deseja o resultado, mas é
punido como se o houvesse desejado, simplesmente por uma presumida assunção de
risco. O dolo eventual se pauta na inobservância e na displicência frente ao
risco gerado por uma conduta. Até por isso que a distinção do dolo eventual da
dita culpa consciente é muito sutil.
A ficção do dolo eventual nasceu da
necessidade de se ter um mecanismo que aplacasse as situações que não guardavam
compatibilidade nem com o dolo, nem com a culpa, mas que de uma forma efetiva
pudesse auxiliar o Direito Penal na hora de se imputar objetivamente um
determinado resultado.
O dolo eventual veio justamente para
atuar entre o dolo e a culpa, é de fato uma ficção quase que própria e que, na
verdade, não deveria ser nem chamada de “dolo”, pois não possui a essência deste,
assim como também não possui o cerne da culpa.
É uma ficção jurídica que, se observada
corretamente, não encontra base de existência nem no dolo, nem na culpa. Ora,
se o dolo direto baseia-se na vontade livre e consciente, enquanto que o dolo
eventual implica que o agente não deseja o resultado, é incongruente imputar a
alguém uma prática dolosa quando a essência do dolo não pôde ser observada.
Bem como não se pode falar em tentativa
no dolo eventual. Ora, como poderia alguém que não deseja um resultado
responder como se houve tentado produzi-lo? É no mínimo contraditório!
Se a pessoa não deseja um resultado, em
regra já se afasta do dolo e, sem este, não se pode falar em tentativa, uma vez
que a tentativa é completamente dependente da intenção. Ninguém tenta algo se
não tiver convicção, certeza, vontade, dolo, daquilo que deseja fazer.
A tentativa, conforme o Código Penal prevê,
no teor do art. 14, inciso II, é quando o crime, iniciada a execução, não se
consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente.
No caso do dolo eventual, considerando
que o agente não deseja o resultado, é justamente por este motivo que não se
verificam circunstâncias alheias que frustrem a execução do crime. Não se pode
impedir alguém de fazer algo que não se deseja. Como também não se pode admitir
tentativa em crime culposo.
Claro que o assunto não será resolvido
de forma tranquila, mas, não obstante isto, não deve ele ser ignorado ou mesmo
tratado com simplicidade, sendo imprescindível que se estabeleçam novas
diretrizes de aplicação do dolo eventual e da culpa consciente. Permanecer como
está é perpetrar uma responsabilização penal objetiva e, de fato, retroceder
frente a todo o garantismo que se conquistou com a Carta de 1988.
Imputar a alguém uma prática dolosa
simplesmente por se presumir uma eventualidade sobre o resultado produzido é, sem
dúvida, consagrar a inconsagrável responsabilidade penal objetiva. Isso é um
retrocesso!
REFERÊNCIAS
ARAUJO JR., Marco Antônio, BARROSO, Darlan
(Coord.). Leis penais especiais. V. 18. São Paulo: RT, 2013. (Coleção
Elementos do Direito).
GOMES, Luis Flávio. Mortes no trânsito:
Brasil é o 4º do mundo – 2014. Avante. Disponível em: <http://institutoavantebrasil.com.br/mortes-no-transito-brasil-e-o-4o-do-mundo-2/>.
Acesso em: 25.02.14.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Parte
Geral. 15. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2013.
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