Mesmo
não tendo a mesma bagagem adquirida pela vasta experiência que meus mestres
possuem de vivência na advocacia criminal, na verdade, muito longe disso, mas,
embora singela, a que possuo já me permite visualizar a tecer certas
considerações sobre a advocacia criminal e as mazelas que afligem o processo
penal.
Todo
aquele que já passou pela infeliz experiência de responder a uma ação penal,
seja ela pública ou privada, entenderá exatamente aquilo que irei apresentar.
Na verdade, a situação é tão delicada que mesmo aquele que desconhece o peso de
um processo penal, não só entenderá como também concordará com o que será dito.
Até porque, devemos ter em mente que ninguém esta livre de passar por essa
mazela.
Pois
bem, primeiramente, explicando o termo Mazelas Do Processo Penal,
vale dizer que trata-se de uma singela homenagem e referência que é feita à
obra do saudoso jurista Francesco Carnelutti que retratou
brilhantemente todas as questões de sua época envolvendo a justiça criminal, o
fazendo em forma de livro que intitulou de “As Misérias do Processo Penal”.
Outrossim, a essência de qualquer dos títulos serve para englobar todos os
fatos e situações que surgem no curso de um procedimento penal, compreendendo
desde o início da persecução e perdurando até o fim do cumprimento da sanção
penal. Trazendo como marca ou característica forte a violação ou o desrespeito
à preceitos constitucionais.
# 1ª PARTE
Presunção De “Inocência” – Não Culpabilidade
A
começar tal análise, vale destacar o princípio constitucional da presunção de
não culpabilidade. Nesse ponto, vale fazer um parêntese para explicar uma
situação vista na prática, posto que tal princípio equivocadamente passou a ser
tratado como sinônimo de presunção de inocência.
O
princípio constitucional da não culpabilidade, previsto no artigo 5º, inciso
LVII da CF, estabelece a norma basilar de que no Brasil ninguém poderá ser
considerado culpado sem que antes haja uma sentença penal condenatória
transitada em julgado.
LVII – ninguém será considerado culpado até o
trânsito em julgado de sentença penal condenatória;
Ocorre
que o referido princípio, embora na prática a expressão “não culpabilidade”
seja tratada como sinônima de “presunção de inocência”, ainda assim, importante
esclarecer que elas se diferenciam na própria essência.
Conforme
dito, o princípio da não culpabilidade estabelece apenas que ninguém será
considerado culpado. Logo, ainda que alguém seja considerado não culpado, esse
status por si só não impede, por exemplo, que seja essa pessoa alvo de qualquer
das medidas cautelares previstas em lei, inclusive a decretação de prisão
provisória. De forma contrária, e já destacando a diferença entre tais
princípios, caso se adotasse no Brasil o princípio da presunção de inocência,
como equivocadamente se acostumou a dizer, nenhuma dessas figuras cautelares
poderiam ser decretadas.
Entendam,
uma pessoa vista como presumidamente inocente, deve ser assim considerada e
tratada, isto é, o status de inocente não tolera ou mesmo permite qualquer tipo
de perturbação. Por sua vez, a reserva legal deste princípio é vista na
Convenção Americana de Direitos humanos, mais especificamente no seu artigo 8º,
§2º.
Artigo 8º – Garantias judiciais
2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito
a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa.
Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes
garantias mínimas:
Feita
essa distinção, e retomando o raciocínio sobre as Mazelas Do Processo Penal,
considerando então o princípio constitucional da presunção de não culpabilidade,
devemos ressaltar que toda essa ideologia é muito bonita em se tratando de
teoria, posto que na prática, por uma gama de fatores, pouco importa a
distinção que acabamos de fazer, haja vista que com muita tranquilidade podemos
afirmar a completa inexistência desses princípios. E o pior, e até mais grave,
é que muitas vezes isso ocorre com autorização da própria lei.
Atualmente
um dos maiores e mais fortes motivos que têm enfraquecido a visualização dessa
não culpabilidade é com certeza a intromissão indiscriminada que a mídia tem
feito sobre muitos casos, e isso se dá principalmente pela forma com que as
notícias chegam para a maior parte da população.
Não
sabemos ao certo se ela é o quarto ou o quinto poder, mas o que não se discute
é justamente todo o poder que a mídia possui, e isso não apenas no sentido de
possibilitar que as pessoas tenham acesso às informações e assim possam formar
suas próprias opiniões, na verdade o termo “poder” aqui é visto de outra
maneira.
O
que se toma como poder nesse momento é na verdade a grande influência que ela é
capaz de exercer sobre as pessoas, induzindo grande parte da população a
simplesmente seguir o que é dito. E esse é o problema, pois nem tudo que é dito
e visto nos canais de comunicação, nem sempre correspondem com a verdade.
Daí,
corroborado pela força midiática exercida sobre o processo penal, podemos
ressaltar outro problema, que na verdade já falamos em outros momentos que é a
busca insana pela mítica verdade real. Muitos absurdos já foram praticados e nome
dessa verdade, mas fato é que não há no processo penal nenhuma verdade que pode
ser chamada de real ou mesmo de concreta, o que há de fato, até por força do
princípio da busca da verdade é tão somente a verdade
processual, que por sua vez é aquela obtida pelo magistrado depois de
se analisar todos os elementos de prova, isto é, reflexo daquilo que existe no
processo.
Desta
feita, o simples fato de se transmitir uma notícia, considerando principalmente
a forma com que ela é passada, não se pode negar que isso por si só já é o
suficiente para garantir a condenação de uma pessoa, que até onde sabemos
deveria ser tratada como presumidamente não culpada.
Talvez
os melhores exemplos a serem trazidos nesse momento sejam aqueles casos que
foram levados ao tribunal popular do júri, dentre eles podemos alguns que se
tornaram emblemáticos como, por exemplo, o caso Nardone, assim como o do
ex-goleiro Bruno, ou então, o único caso que foi transmitido integralmente pela
TV, o caso do Misael Bisbo julgado no mês de março de 2013, e por ai muito
outros casos semelhantes.
Mas
o que se ressalta dentre esse exemplos é que em todos eles a mídia foi tão
feroz e extremamente parcial ao transmitir as notícias, influenciando a
população, que desde o início já se tinha como certa a condenação em todos os
casos. Exatamente como hoje é feita sobre o caso Yoki, ou será que alguém tem
dúvida de uma condenação?
Vejam,
não estamos aqui discutindo o mérito de nenhum desses casos e tampouco
afirmando se as decisões foram justas ou não, até porque não temos condições
para fazer esse tipo de análise. A crítica que se faz, serve tão somente de
alerta, alerta de que o conteúdo de uma manchete pode condenar um inocente como
possui a mesma força para absolver um culpado, e é essa a força ou o poder da
mídia que diariamente vem interferindo na boa e esperada aplicação do direito
penal.
Os
exemplos lançados acima, refletem perfeitamente o que estamos dizendo, posto
que neles a condenação já era certa desde a primeira notícia que se viu, assim
como também será no último exemplo, salvo se a própria mídia mudar sua opinião.
Claro
que toda essa influência ocorre de maneira indiscriminada em todo e qualquer
crime de repercussão. Ocorre que no caso do tribunal popular do júri essa
situação é mais grave, uma vez que ali os réus são julgados por pessoas do povo
e por isso a influência da mídia chega a ser até mais visível e prejudicial.
Não devemos ignorar o fato que uma coisa é um juiz legalmente investido na
função, assistir uma notícia e depois julgar, outra coisa, é um leigo que em
determinado momento é escolhido a vestir a toga de julgador e assim decidir o
destino de outra pessoa.
Isso
porque, como bem sabemos, são justamente essas pessoas que compõem o conselho
de sentença, pessoas das mais variadas ocupações e classes sociais, que
diariamente estão sendo “metralhadas” com notícias fantasiosas. Como exigir
delas, depois dessa verdadeira “lavagem cerebral” promovida pela mídia, que
tenham eles condições de julgarem de maneira imparcial.
Outra
grande violação que temos visto sobre o princípio da não culpabilidade, que,
diga-se, também é fruto da mídia, é o tratamento dispensado aos crimes de
trânsito com influência de álcool. O que se tem visto na prática é o surgimento
de uma verdadeira responsabilidade penal objetiva, motivada principalmente pela
força da mídia que têm banalizado o dolo eventual. Depois de um acidente dessa
natureza é quase que automático escolherem alguém para ser o responsável e em
seguida taxá-lo como criminoso, ‘monstro”, etc. Isso tudo em um país onde se
preza a não culpabilidade!
Noutro
quadro, dissemos também, que em certos momentos, a própria lei autoriza a
violação do princípio constitucional da não culpabilidade. Talvez a maior prova
desse absurdo seja o artigo 156 do CPP, que expressamente autoriza o juiz ser,
além de um julgador, um verdadeiro produtor de provas no processo penal.
Ora,
se verdadeiramente vige no Brasil o princípio da não culpabilidade e como
desdobramento o in dubio pro reu, se o juiz não tiver embasamento
probatório suficiente para condenar, não deve produzir provas para justificar a
condenação, deve de outro modo, havendo dúvida, simplesmente absolver o
acusado.
Outro
obstáculo ao princípio da não culpabilidade é com certeza a sentença de
pronúncia vista no fim da primeira fase do Júri. Costuma-se dizer que nessa
fase vige o princípio do in dubio pro societates, isto é, havendo dúvida
sobre a acusação deve o acusado ser pronunciado e levado a plenário (artigo 413
do CPP). Entretanto, ocorre que indo de encontro a tal regramento diz o artigo
414 do CPP, que caso não haja prova suficiente e: “Não se convencendo da
materialidade do fato ou da existência de indícios suficientes de autoria ou de
participação, o juiz, fundamentadamente, impronunciará o acusado”
E
ai, como fica essa questão? Na prática, a norma do artigo 414 do CPP é
claramente violada sob o argumento de que vigora nessa fase o in dubio pro
societates.
Ademais,
atualmente em decorrência das inovações vistas no campo dos crimes contra a
dignidade sexual, e claro pela atuação da mídia, não há como não dizer da
situação de todo aquele que é simplesmente acusado de um crime sexual. O que
temos visto é que uma simples acusação feita no plantão policial já é
suficiente por quase terminar com a vida daquele que sofre esse tipo de
acusação.
É
impressionante como que a sociedade torna-se irracional diante de um crime
dessa natureza. Claro que se trata de um crime atroz, bárbaro e que merece
repúdio dada sua gravidade, isso não se questiona. Mas para isso deve-se ao
menos ter certeza de quem o tenha praticado. Pegar o primeiro que aparece como
suspeito e de pronto já querer puni-lo com penas capitais, não resolve o
problema e muito menos se fará justiça.
Apenas
para se dimensionar toda a força que uma acusação dessa natureza possui, aliada
a influência e o estrago que a mídia pode provocar, vale citar como exemplo, o
caso da escola Base de São Paulo, que na década 1990 tomou conta dos
noticiários com acusação de que crianças estariam sendo abusadas sexualmente.
Essa notícia recebeu o título de maior erro jornalístico da década, mas no
início das acusações o que se via era uma completa presunção de culpabilidade,
e apenas para se dimensionar o estrago que uma notícia como essa pode causar,
vale dizer que mesmo tendo sido os acusados absolvidos pelo Estado, ainda há na
sociedade um sentimento de dúvida se de fato eles são inocentes.
A
falta de presunção de não culpabilidade nesses casos é tamanha que basta dizer
que ocorreu um crime sexual e que Fulano é o autor, pronto, isso por si só já é
suficiente para “condenar” esse suspeito, principalmente porque em seguida já
se começa a veicular notícias como se a autoria do crime já estivesse certa. Em
certos programas de TV, alguns apresentadores preocupados apenas com o ibope,
passam a dirigir tratamento a esse suspeito como “bandido” “monstro” etc. Isso
tudo em um momento em que teoricamente se deveria vigorar o princípio da não
culpabilidade, mas o que há de fato é o princípio de que todos são culpados até
que se prove o contrário.
Tudo
aquilo que é motivado por sentimentos extremos acaba trazendo como consequência
resultados de igual monta. Muitas vezes quando a acusação de um crime sexual
ocorre antes mesmo do Estado por suas “mãos” sobre o suspeito, a própria
sociedade, ignorando a não culpabilidade, acaba exercendo um falso “direito” de
justiça, punido o suspeito com as próprias mãos. Muitos são os exemplos que
poderíamos lançar, mas apenas para clarear o que esta sendo dito vale relembrar
o que ocorreu em Recife no ano de 2012.
Populares
da região de Peixinhos, indignados e assustados com constantes casos de
estupros que vinham ocorrendo, e, acreditando tratar-se do responsável pelos
crimes, de forma completamente impensada, acabaram agredindo Pedro Alves de
Miranda, 47 anos de idade, levando-o a morte. Depois de tal evento, tomou-se
conhecimento que a vítima das agressões nada tinha haver com o verdadeiro
responsável pelos crimes.
Ainda
sobre os crimes dessa natureza, vale ressaltar um ponto que só ocorre em
relação a eles. Apenas para ilustrar a agressividade, bem como a gravidade de
uma acusação por crimes sexuais, ainda mais quando envolve menor, pode-se dizer
que o suspeito, em um único processo recebe até “três condenações”: i)
Uma quando simplesmente é apontado pela polícia como investigado de ter
praticado o crime. Nesse momento, na melhor das hipóteses ele sofre a chamada
sanção moral por parte da sociedade, como no exemplo visto no caso da Escola
Base; ii) Num segundo momento, quem o “condena” é o Ministério
Público, não através de uma sentença, mas simplesmente por denunciá-lo pelo
crime, o que, em tese, acaba tornando legítima a reação da sociedade vista no
primeiro momento; iii) E num terceiro momento, ai sim pode-se
dizer que seria a única condenação legítima, que é aquela vista por parte
do juiz que o faz meio de uma sentença, no fim do processo.
O
terceiro momento é único que tem legitimidade para afirmar ou ao a acusação,
todavia, é de fato a que menos importa na ótica da não culpabilidade, posto que
ainda que seja o acusado absolvido nessa fase, os dois primeiros momentos, que
deveria guardar relação direta com a não culpabilidade, são justamente os
momentos que condenará e marcará pelo resta da vida.
Infelizmente,
não há outra conclusão senão a que no Brasil deve-se amadurecer a idéia da não
culpabilidade, pelo menos para aproximá-la do que se tem em teoria. Veja,
equivocamente se diz que vigora o princípio da presunção de inocência, que
conforme vimos é mais amplo e absoluto, sendo que na verdade nem mesmo o
princípio da não culpabilidade é respeitado como deveria.
Embora
não sejam todas as situações, mas as poucas aqui apresentadas já demonstram de
forma suficiente que diariamente, por várias questões e motivos, o princípio constitucional
da não culpabilidade é violado e ignorado.
Essa foi a primeira das Mazelas!
Nenhum comentário:
Postar um comentário