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“O Direito Penal tem cheiro, cor, raça, classe social; enfim, há um grupo de escolhidos, sobre os quais haverá a manifestação da força do Estado.” (Rogério Greco – Direito Penal do Equilíbrio)

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

AS MAZELAS DO PROCESSO PENAL # 1ª PARTE





Mesmo não tendo a mesma bagagem adquirida pela vasta experiência que meus mestres possuem de vivência na advocacia criminal, na verdade, muito longe disso, mas, embora singela, a que possuo já me permite visualizar a tecer certas considerações sobre a advocacia criminal e as mazelas que afligem o processo penal.

Todo aquele que já passou pela infeliz experiência de responder a uma ação penal, seja ela pública ou privada, entenderá exatamente aquilo que irei apresentar. Na verdade, a situação é tão delicada que mesmo aquele que desconhece o peso de um processo penal, não só entenderá como também concordará com o que será dito. Até porque, devemos ter em mente que ninguém esta livre de passar por essa mazela.

Pois bem, primeiramente, explicando o termo Mazelas Do Processo Penal, vale dizer que trata-se de uma singela homenagem e referência que é feita à obra do saudoso jurista Francesco Carnelutti que retratou brilhantemente todas as questões de sua época envolvendo a justiça criminal, o fazendo em forma de livro que intitulou de “As Misérias do Processo Penal”. Outrossim, a essência de qualquer dos títulos serve para englobar todos os fatos e situações que surgem no curso de um procedimento penal, compreendendo desde o início da persecução e perdurando até o fim do cumprimento da sanção penal. Trazendo como marca ou característica forte a violação ou o desrespeito à preceitos constitucionais.


# 1ª PARTE
Presunção De “Inocência” – Não Culpabilidade

A começar tal análise, vale destacar o princípio constitucional da presunção de não culpabilidade. Nesse ponto, vale fazer um parêntese para explicar uma situação vista na prática, posto que tal princípio equivocadamente passou a ser tratado como sinônimo de presunção de inocência.

O princípio constitucional da não culpabilidade, previsto no artigo 5º, inciso LVII da CF, estabelece a norma basilar de que no Brasil ninguém poderá ser considerado culpado sem que antes haja uma sentença penal condenatória transitada em julgado.
LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;

Ocorre que o referido princípio, embora na prática a expressão “não culpabilidade” seja tratada como sinônima de “presunção de inocência”, ainda assim, importante esclarecer que elas se diferenciam na própria essência.

Conforme dito, o princípio da não culpabilidade estabelece apenas que ninguém será considerado culpado. Logo, ainda que alguém seja considerado não culpado, esse status por si só não impede, por exemplo, que seja essa pessoa alvo de qualquer das medidas cautelares previstas em lei, inclusive a decretação de prisão provisória. De forma contrária, e já destacando a diferença entre tais princípios, caso se adotasse no Brasil o princípio da presunção de inocência, como equivocadamente se acostumou a dizer, nenhuma dessas figuras cautelares poderiam ser decretadas.

Entendam, uma pessoa vista como presumidamente inocente, deve ser assim considerada e tratada, isto é, o status de inocente não tolera ou mesmo permite qualquer tipo de perturbação. Por sua vez, a reserva legal deste princípio é vista na Convenção Americana de Direitos humanos, mais especificamente no seu artigo 8º, §2º.
Artigo 8º – Garantias judiciais
2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:

Feita essa distinção, e retomando o raciocínio sobre as Mazelas Do Processo Penal, considerando então o princípio constitucional da presunção de não culpabilidade, devemos ressaltar que toda essa ideologia é muito bonita em se tratando de teoria, posto que na prática, por uma gama de fatores, pouco importa a distinção que acabamos de fazer, haja vista que com muita tranquilidade podemos afirmar a completa inexistência desses princípios. E o pior, e até mais grave, é que muitas vezes isso ocorre com autorização da própria lei.

Atualmente um dos maiores e mais fortes motivos que têm enfraquecido a visualização dessa não culpabilidade é com certeza a intromissão indiscriminada que a mídia tem feito sobre muitos casos, e isso se dá principalmente pela forma com que as notícias chegam para a maior parte da população.

Não sabemos ao certo se ela é o quarto ou o quinto poder, mas o que não se discute é justamente todo o poder que a mídia possui, e isso não apenas no sentido de possibilitar que as pessoas tenham acesso às informações e assim possam formar suas próprias opiniões, na verdade o termo “poder” aqui é visto de outra maneira.

O que se toma como poder nesse momento é na verdade a grande influência que ela é capaz de exercer sobre as pessoas, induzindo grande parte da população a simplesmente seguir o que é dito. E esse é o problema, pois nem tudo que é dito e visto nos canais de comunicação, nem sempre correspondem com a verdade.

Daí, corroborado pela força midiática exercida sobre o processo penal, podemos ressaltar outro problema, que na verdade já falamos em outros momentos que é a busca insana pela mítica verdade real. Muitos absurdos já foram praticados e nome dessa verdade, mas fato é que não há no processo penal nenhuma verdade que pode ser chamada de real ou mesmo de concreta, o que há de fato, até por força do princípio da busca da verdade é tão somente a verdade processual, que por sua vez é aquela obtida pelo magistrado depois de se analisar todos os elementos de prova, isto é, reflexo daquilo que existe no processo.

Desta feita, o simples fato de se transmitir uma notícia, considerando principalmente a forma com que ela é passada, não se pode negar que isso por si só já é o suficiente para garantir a condenação de uma pessoa, que até onde sabemos deveria ser tratada como presumidamente não culpada.

Talvez os melhores exemplos a serem trazidos nesse momento sejam aqueles casos que foram levados ao tribunal popular do júri, dentre eles podemos alguns que se tornaram emblemáticos como, por exemplo, o caso Nardone, assim como o do ex-goleiro Bruno, ou então, o único caso que foi transmitido integralmente pela TV, o caso do Misael Bisbo julgado no mês de março de 2013, e por ai muito outros casos semelhantes.

Mas o que se ressalta dentre esse exemplos é que em todos eles a mídia foi tão feroz e extremamente parcial ao transmitir as notícias, influenciando a população, que desde o início já se tinha como certa a condenação em todos os casos. Exatamente como hoje é feita sobre o caso Yoki, ou será que alguém tem dúvida de uma condenação?

Vejam, não estamos aqui discutindo o mérito de nenhum desses casos e tampouco afirmando se as decisões foram justas ou não, até porque não temos condições para fazer esse tipo de análise. A crítica que se faz, serve tão somente de alerta, alerta de que o conteúdo de uma manchete pode condenar um inocente como possui a mesma força para absolver um culpado, e é essa a força ou o poder da mídia que diariamente vem interferindo na boa e esperada aplicação do direito penal.

Os exemplos lançados acima, refletem perfeitamente o que estamos dizendo, posto que neles a condenação já era certa desde a primeira notícia que se viu, assim como também será no último exemplo, salvo se a própria mídia mudar sua opinião.

Claro que toda essa influência ocorre de maneira indiscriminada em todo e qualquer crime de repercussão. Ocorre que no caso do tribunal popular do júri essa situação é mais grave, uma vez que ali os réus são julgados por pessoas do povo e por isso a influência da mídia chega a ser até mais visível e prejudicial. Não devemos ignorar o fato que uma coisa é um juiz legalmente investido na função, assistir uma notícia e depois julgar, outra coisa, é um leigo que em determinado momento é escolhido a vestir a toga de julgador e assim decidir o destino de outra pessoa.

Isso porque, como bem sabemos, são justamente essas pessoas que compõem o conselho de sentença, pessoas das mais variadas ocupações e classes sociais, que diariamente estão sendo “metralhadas” com notícias fantasiosas. Como exigir delas, depois dessa verdadeira “lavagem cerebral” promovida pela mídia, que tenham eles condições de julgarem de maneira imparcial.

Outra grande violação que temos visto sobre o princípio da não culpabilidade, que, diga-se, também é fruto da mídia, é o tratamento dispensado aos crimes de trânsito com influência de álcool. O que se tem visto na prática é o surgimento de uma verdadeira responsabilidade penal objetiva, motivada principalmente pela força da mídia que têm banalizado o dolo eventual. Depois de um acidente dessa natureza é quase que automático escolherem alguém para ser o responsável e em seguida taxá-lo como criminoso, ‘monstro”, etc. Isso tudo em um país onde se preza a não culpabilidade!

Noutro quadro, dissemos também, que em certos momentos, a própria lei autoriza a violação do princípio constitucional da não culpabilidade. Talvez a maior prova desse absurdo seja o artigo 156 do CPP, que expressamente autoriza o juiz ser, além de um julgador, um verdadeiro produtor de provas no processo penal.

Ora, se verdadeiramente vige no Brasil o princípio da não culpabilidade e como desdobramento o in dubio pro reu, se o juiz não tiver embasamento probatório suficiente para condenar, não deve produzir provas para justificar a condenação, deve de outro modo, havendo dúvida, simplesmente absolver o acusado.

Outro obstáculo ao princípio da não culpabilidade é com certeza a sentença de pronúncia vista no fim da primeira fase do Júri. Costuma-se dizer que nessa fase vige o princípio do in dubio pro societates, isto é, havendo dúvida sobre a acusação deve o acusado ser pronunciado e levado a plenário (artigo 413 do CPP). Entretanto, ocorre que indo de encontro a tal regramento diz o artigo 414 do CPP, que caso não haja prova suficiente e: “Não se convencendo da materialidade do fato ou da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação, o juiz, fundamentadamente, impronunciará o acusado”

E ai, como fica essa questão? Na prática, a norma do artigo 414 do CPP é claramente violada sob o argumento de que vigora nessa fase o in dubio pro societates.

Ademais, atualmente em decorrência das inovações vistas no campo dos crimes contra a dignidade sexual, e claro pela atuação da mídia, não há como não dizer da situação de todo aquele que é simplesmente acusado de um crime sexual. O que temos visto é que uma simples acusação feita no plantão policial já é suficiente por quase terminar com a vida daquele que sofre esse tipo de acusação.

É impressionante como que a sociedade torna-se irracional diante de um crime dessa natureza. Claro que se trata de um crime atroz, bárbaro e que merece repúdio dada sua gravidade, isso não se questiona. Mas para isso deve-se ao menos ter certeza de quem o tenha praticado. Pegar o primeiro que aparece como suspeito e de pronto já querer puni-lo com penas capitais, não resolve o problema e muito menos se fará justiça.

Apenas para se dimensionar toda a força que uma acusação dessa natureza possui, aliada a influência e o estrago que a mídia pode provocar, vale citar como exemplo, o caso da escola Base de São Paulo, que na década 1990 tomou conta dos noticiários com acusação de que crianças estariam sendo abusadas sexualmente. Essa notícia recebeu o título de maior erro jornalístico da década, mas no início das acusações o que se via era uma completa presunção de culpabilidade, e apenas para se dimensionar o estrago que uma notícia como essa pode causar, vale dizer que mesmo tendo sido os acusados absolvidos pelo Estado, ainda há na sociedade um sentimento de dúvida se de fato eles são inocentes.

A falta de presunção de não culpabilidade nesses casos é tamanha que basta dizer que ocorreu um crime sexual e que Fulano é o autor, pronto, isso por si só já é suficiente para “condenar” esse suspeito, principalmente porque em seguida já se começa a veicular notícias como se a autoria do crime já estivesse certa. Em certos programas de TV, alguns apresentadores preocupados apenas com o ibope, passam a dirigir tratamento a esse suspeito como “bandido” “monstro” etc. Isso tudo em um momento em que teoricamente se deveria vigorar o princípio da não culpabilidade, mas o que há de fato é o princípio de que todos são culpados até que se prove o contrário.

Tudo aquilo que é motivado por sentimentos extremos acaba trazendo como consequência resultados de igual monta. Muitas vezes quando a acusação de um crime sexual ocorre antes mesmo do Estado por suas “mãos” sobre o suspeito, a própria sociedade, ignorando a não culpabilidade, acaba exercendo um falso “direito” de justiça, punido o suspeito com as próprias mãos. Muitos são os exemplos que poderíamos lançar, mas apenas para clarear o que esta sendo dito vale relembrar o que ocorreu em Recife no ano de 2012.

Populares da região de Peixinhos, indignados e assustados com constantes casos de estupros que vinham ocorrendo, e, acreditando tratar-se do responsável pelos crimes, de forma completamente impensada, acabaram agredindo Pedro Alves de Miranda, 47 anos de idade, levando-o a morte. Depois de tal evento, tomou-se conhecimento que a vítima das agressões nada tinha haver com o verdadeiro responsável pelos crimes.

Ainda sobre os crimes dessa natureza, vale ressaltar um ponto  que só ocorre em relação a eles. Apenas para ilustrar a agressividade, bem como a gravidade de uma acusação por crimes sexuais, ainda mais quando envolve menor, pode-se dizer que o suspeito, em um único processo recebe até “três condenações”: i) Uma quando simplesmente é apontado pela polícia como investigado de ter praticado o crime. Nesse momento, na melhor das hipóteses ele sofre a chamada sanção moral por parte da sociedade, como no exemplo visto no caso da Escola Base; ii) Num segundo momento, quem o “condena” é o Ministério Público, não através de uma sentença, mas simplesmente por denunciá-lo pelo crime, o que, em tese, acaba tornando legítima a reação da sociedade vista no primeiro momento; iii) E num terceiro momento, ai sim pode-se dizer que seria a única condenação legítima, que é  aquela vista por parte do juiz que o faz meio de uma sentença, no fim do processo.

O terceiro momento é único que tem legitimidade para afirmar ou ao a acusação, todavia, é de fato a que menos importa na ótica da não culpabilidade, posto que ainda que seja o acusado absolvido nessa fase, os dois primeiros momentos, que deveria guardar relação direta com a não culpabilidade, são justamente os momentos que condenará e marcará pelo resta da vida.

Infelizmente, não há outra conclusão senão a que no Brasil deve-se amadurecer a idéia da não culpabilidade, pelo menos para aproximá-la do que se tem em teoria. Veja, equivocamente se diz que vigora o princípio da presunção de inocência, que conforme vimos é mais amplo e absoluto, sendo que na verdade nem mesmo o princípio da não  culpabilidade é respeitado  como deveria.

Embora não sejam todas as situações, mas as poucas aqui apresentadas já demonstram de forma suficiente que diariamente, por várias questões e motivos, o princípio constitucional da não culpabilidade é violado e ignorado.

Essa foi a primeira das Mazelas!

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